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GAZUA

GAZUA

Para onde vai este caminho?

AG, 28.11.22

Há muitos anos, já não sei onde, li uma entrevista ao fotógrafo Sebastião Salgado sobre um seu projecto na Etiópia. Dizia ele que alguns dos caminhos que percorreu lá, nas montanhas, existem há mais de 3 mil anos. Foi nesse momento que decidi (mais uma vez) que queria muito ir à Etiópia. Mas ainda não fui.

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Caminhos fazem-se e usam-se. Só existem enquanto se fazem e se usam. Basta andar por zonas despovoadas para perceber isso. Há semanas percorri caminhos na serra de Monchique que provavelmente foram os mesmos que o meu avô fez tantas vezes, há muitas décadas atrás, quando ia comprar cortiça. E tanta gente antes de nós: um desses caminhos é (dizem) uma calçada medieval. 

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Onde não passamos (ou outros animais) o mato cresce, a erva tapa as linhas de passagem, o caminho desaparece. Ali ao lado, às vezes, nasce um caminho novo. Hoje em dia é quase sempre uma estrada de alcatrão ou um estradão largo para passagem das máquinas, caso haja floresta. 

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Às vezes é ao contrário: desenha-se um parque ou um jardim, o arquitecto decide onde vão ser os caminhos. Passados poucos meses, as pessoas criaram outros, muitas vezes uma alternativa mais pragmática aos que foram decididos nos gabinetes. Em inglês chamam-lhes 'desire paths'. Em português não sei que nome têm. Nascem como as ervas daninhas, ignorando a ordem alheia. São sulcos castanhos, modestos, económicos.

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Quem gosta de caminhar tem normalmente um tipo de caminho preferido. Não só por ser a subir, ou a descer, ou plano, mas pela rudeza do piso, pela largura, pelo tipo de linha, pela distância a que nos deixa do que há em volta. Alguns são difíceis, pedregosos, escorregadios, obrigam-nos a concentrar-nos neles de tal forma que quase não nos lembramos de olhar em volta. Para mim, os melhores são os caminhos de pé posto – aqueles onde geralmente só podemos caminhar em fila indiana.

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Muitos passeios começam na berma de uma estrada municipal, tomam depois um estradão onde ocasionalmente passa um carro, depois vão estreitando, cada vez mais finos, cada vez menos marcados. E muitos acabam no meio de qualquer sítio, sem que se perceba por onde continuam. Dos caminhos rurais que permanecem, cada vez mais são alcatroados, cada vez menos são lugares onde se possa andar sem receio de passar um carro, ou com o prazer básico de pisar a terra, terreno macio e variado. Servem outros clientes, que não os ociosos caminhantes.

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Às vezes só são visíveis no verão, quando as ervas secam. Ou então a certas horas do dia, quando o sol bate de tal maneira que uma fileira de ervas ligeiramente mais gastas tem um brilho mais ténue, e percebemos que aquela linha quase indistinguível é um caminho. Quando acabam os caminhos, podemos sempre continuar e inventar um – e isso pode ser feito apenas andando, sem a pretensão de dar corpo aos muitos clichés que se colam a esta ideia de 'fazer o seu caminho'. Até porque, se não houver mais ninguém a fazê-lo, não vai deixar marca.

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Num dos locais onde ando regularmente a pé, seguindo por caminhos que já serviram hortas e pomares, hoje quase todos abandonados, os poucos carreiros ainda marcados vão dar, na maioria das vezes, a colmeias. Os apicultores parecem ser, ali, os últimos pastores de caminhos. Ainda que consiga passar para o outro lado das colmeias (nem sempre me atrevo), raramente encontro a continuação, porque para o apicultor o que interessa termina ali, e acabo por voltar atrás. Ou, se suspeitar de que dali a pouco irei dar a outro caminho, posso seguir em frente (e em frente pode ser qualquer direcção).

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São caminhos que atravessam terrenos particulares, mas onde já não passa ninguém, e nem todos gostam do piso acidentado – por vezes é preciso saltar valados, afastar silvas e espargueiras, furar por baixo da ramagem densa das árvores. Uma tesoura de poda dava jeito, mas ficou sempre esquecida em casa. Mas gosto desta negociação com as coisas que encontramos pelo caminho, sejam pedras, plantas, ribeiros, terreno revolvido por veados e javalis, outros animais.

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Este texto é como muitos caminhos: não vai a nenhum sítio em especial. Anda por aí às voltas. Se for para ir dar a algum lado, que seja a um livro – um livro extraordinário sobre caminhos, do Bruce Chatwin, chamado 'Songlines'. Não sei se há tradução para a expressão songlines, 'linhas de canções', que são no fundo os caminhos tradicionais dos aborígenes australianos. Mais do que caminhos marcados no terreno, são percursos registados em canções e histórias. Uma pessoa que conheça estas canções é capaz de fazer um determinado percurso através do território repetindo as palavras que o descrevem. Há poucas ideias que me pareçam tão maravilhosas como esta. 

 

Há muito que queria falar de caminhos, e várias vezes me esqueci. Esta semana peguei no livro "Das Pedras, Pão", com textos do Henrique Santos Pereira e fotografias do Duarte Belo, e logo de início há uma série de imagens de estradas e caminhos. O livro está à venda, por exemplo, na Livraria Snob.