Não só de maçã vive o strudel
Frau Sterz era tão baixa e curvada que, ao estender a massa na bancada, os cotovelos quase pousavam. “O strudel tem de ser fino como uma folha de papel” – explicava, num alemão com um sotaque adocicado, suspendendo a massa com o rolo à frente da cara. O véu de strudel deixava ver a pele morena e enrugada, o nariz grande, a dentadura a luzir num sorriso. Depois, lançava a massa no balcão, ajeitava-lhe as bainhas, estendia mais, falava sozinha. As duas filhas tinham posto a mesa e terminavam o creme de baunilha. Aquele era o dia do banquete anual, com o strudel que a mãe tinha trazido da Hungria, antes da guerra.
Um strudel de maçã checo. Imagem: che, licença CC BY-SA 2.5
Se um dia vos convidarem para almoçar strudel, ponham de lado os mas. Por exemplo: “Mas vamos almoçar uma sobremesa?” Aliás, almoçar uma sobremesa não tem de ser um problema – para mim, é a concretização dum sonho de criança. Mais ainda se tiver maçã. Não as vulgares maçãs de mesa, macias e ronronantes. As maçãs do strudel devem cravar a garra naquele cantinho do céu da boca atrás dos dentes do siso. Na Alemanha cultivam-se variedades ácidas e aromáticas. Comidas cruas, desinfectam o paladar. Com uma purga de açúcar e manteiga ficam dóceis sem perderem o toque bravio.
Voltamos ao banquete de Frau Sterz. Não almoçámos uma sobremesa. O strudel de maçã, como descobri então, é apenas uma das variantes possíveis. À minha frente pousaram três grandes tabuleiros com cinco rolos de strudel, todos selados na massa que eu vira fazer. Inge, a filha mais velha, pegou na faca e cortou o suspense com um desabar de estalidos crepitantes. Pôs uma fatia no meu prato. Lá dentro, havia couve.
A couve: essa planta rústica que tantas vezes serve só para dar um ar de verdura aos protagonistas duma refeição. E bastou uma garfada para confirmar o que o nariz já anunciara: a crosta tostada e untuosa da massa de Frau Sterz assentava-lhe lindamente. Em juliana fina, com temperos discretos, suculenta, abria a refeição a solo, com uma grande cartada.
Imagem: Matthias Böckel no Pixabay
A desordem entrou no banquete à medida que estreámos os outros rolos de strudel. Cada um começou a servir-se sem pedir licença. A couve era o único recheio salgado, e por isso viera a dobrar. Os outros eram doces, como no meu sonho de infância. Havia strudel de ginja, havia de quark, e havia de maçã. Estes eram acompanhados pelo creme de baunilha – um jarrinho de louça branca que as filhas de Frau Sterz iam enchendo, sem fim à vista. Sei que ficámos muito tempo à mesa e que eu nunca parei de comer. O strudel era pouco doce e a leve acidez dos recheios era amaciada pela baunilha. Não havia como enjoar. Frau Sterz e as filhas conversavam amenamente sobre a família, as casas, as compras, o cágado que hibernava, memórias antigas.
Frau Sterz e o marido tinham vindo da Hungria no fim dos anos 30. Eram de uma dessas zonas de língua alemã que o império austro-húngaro empurrou dum lado para o outro, consoante o mapa das nações. O início da guerra encaminhou-os para a Alemanha, e com eles veio aquele banquete de strudel.
Maçãs Boskop, uma variedade com acidez. Imagem: Wolfgang Claussen no Pixabay
O strudel é comum a várias tradições culinárias da Europa central, mas, como é habitual nestas coisas, há sempre um país que se chega à frente para reivindicá-lo como seu e uma versão – neste caso, o strudel de maçã – que recebe todas as honras. Mas na sala de Frau Sterz não havia filhos predilectos. Amei-os a todos por igual.
Este texto foi escrito como exercício durante o workshop de Escrita Gastronómica do Ricardo Dias Felner, O Homem que Comia Tudo.