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GAZUA

GAZUA

Não só de maçã vive o strudel

AG, 23.03.21

Frau Sterz era tão baixa e curvada que, ao estender a massa na bancada, os cotovelos quase pousavam. “O strudel tem de ser fino como uma folha de papel” – explicava, num alemão com um sotaque adocicado, suspendendo a massa com o rolo à frente da cara. O véu de strudel deixava ver a pele morena e enrugada, o nariz grande, a dentadura a luzir num sorriso. Depois, lançava a massa no balcão, ajeitava-lhe as bainhas, estendia mais, falava sozinha. As duas filhas tinham posto a mesa e terminavam o creme de baunilha. Aquele era o dia do banquete anual, com o strudel que a mãe tinha trazido da Hungria, antes da guerra.

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Um strudel de maçã checo. Imagem: che, licença CC BY-SA 2.5

Se um dia vos convidarem para almoçar strudel, ponham de lado os mas. Por exemplo: “Mas vamos almoçar uma sobremesa?” Aliás, almoçar uma sobremesa não tem de ser um problema – para mim, é a concretização dum sonho de criança. Mais ainda se tiver maçã. Não as vulgares maçãs de mesa, macias e ronronantes. As maçãs do strudel devem cravar a garra naquele cantinho do céu da boca atrás dos dentes do siso. Na Alemanha cultivam-se variedades ácidas e aromáticas. Comidas cruas, desinfectam o paladar. Com uma purga de açúcar e manteiga ficam dóceis sem perderem o toque bravio.

Voltamos ao banquete de Frau Sterz. Não almoçámos uma sobremesa. O strudel de maçã, como descobri então, é apenas uma das variantes possíveis. À minha frente pousaram três grandes tabuleiros com cinco rolos de strudel, todos selados na massa que eu vira fazer. Inge, a filha mais velha, pegou na faca e cortou o suspense com um desabar de estalidos crepitantes. Pôs uma fatia no meu prato. Lá dentro, havia couve.

A couve: essa planta rústica que tantas vezes serve só para dar um ar de verdura aos protagonistas duma refeição. E bastou uma garfada para confirmar o que o nariz já anunciara: a crosta tostada e untuosa da massa de Frau Sterz assentava-lhe lindamente. Em juliana fina, com temperos discretos, suculenta, abria a refeição a solo, com uma grande cartada.

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Imagem: Matthias Böckel no Pixabay

A desordem entrou no banquete à medida que estreámos os outros rolos de strudel. Cada um começou a servir-se sem pedir licença. A couve era o único recheio salgado, e por isso viera a dobrar. Os outros eram doces, como no meu sonho de infância. Havia strudel de ginja, havia de quark, e havia de maçã. Estes eram acompanhados pelo creme de baunilha – um jarrinho de louça branca que as filhas de Frau Sterz iam enchendo, sem fim à vista. Sei que ficámos muito tempo à mesa e que eu nunca parei de comer. O strudel era pouco doce e a leve acidez dos recheios era amaciada pela baunilha. Não havia como enjoar. Frau Sterz e as filhas conversavam amenamente sobre a família, as casas, as compras, o cágado que hibernava, memórias antigas.

Frau Sterz e o marido tinham vindo da Hungria no fim dos anos 30. Eram de uma dessas zonas de língua alemã que o império austro-húngaro empurrou dum lado para o outro, consoante o mapa das nações. O início da guerra encaminhou-os para a Alemanha, e com eles veio aquele banquete de strudel.

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Maçãs Boskop, uma variedade com acidez. Imagem: Wolfgang Claussen no Pixabay

O strudel é comum a várias tradições culinárias da Europa central, mas, como é habitual nestas coisas, há sempre um país que se chega à frente para reivindicá-lo como seu e uma versão – neste caso, o strudel de maçã – que recebe todas as honras. Mas na sala de Frau Sterz não havia filhos predilectos. Amei-os a todos por igual.

 

Este texto foi escrito como exercício durante o workshop de Escrita Gastronómica do Ricardo Dias Felner, O Homem que Comia Tudo.

Uma laranja ao sol

AG, 18.03.21

Sempre que se sentirem zangados com a China por causa do covid, lembrem-se de que foi também de lá  que vieram as laranjas. Houve uma longa fase da história humana em que a maior parte do mundo não sabia o que era uma laranja. Felizmente, não vivi nessa altura.

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Como as coisas mudam: em 2019, segundo dados publicados pelo site Statista, as laranjas foram a quarta fruta mais produzida no mundo, em toneladas (atrás de bananas, melancias e maçãs; sendo o peso o critério, as melancias têm uma vantagem competitiva difícil de ultrapassar). 

Números à parte, há uma coisa a que vale sempre a pena voltar: por mais que a laranja se tenha tornado uma visão banal, continua a ser uma bomba de aroma e frescura a iluminar um recanto obscuro do nosso universo de sabores. Vale a pena comer cada laranja como se fosse a surpresa que, de facto, é.

 

A conquista do mundo em laranjas

As laranjas doces, um dos muitos citrinos existentes, são um híbrido do sul da China e de outras regiões do sudeste asiático. Foram trazidas por mercadores italianos e portugueses, pelo que só a partir do século XVI ficaram conhecidas na Europa.

Durante muito tempo, eram um produto de luxo, muito apreciado também pelo seu perfume. Eram comidas nos teatros londrinos nos tempos de Shakespeare, por exemplo, e provavelmente ajudavam a disfarçar os maus odores da multidão. Em algumas línguas o nome deste fruto lembra a viagem que fizeram até lá chegar: em albanês, por exemplo, chamam-se portukalli.

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A história do cultivo e da massificação das laranjas no Ocidente tem muitas curiosidades. Um episódio do Gastropod sobre as cores dos alimentos explica como as laranjas da Florida, que eram naturalmente esverdeadas quando maduras, perderam popularidade face às da Califórnia porque os consumidores eram mais atraídos pelo tom quente da laranja cor de laranja. O que levou os produtores da Florida, ao fim de algumas peripécias, a encaminhar grande parte da sua produção para o fabrico de sumo. Longe da casca, longe do coração.

E que nome se dava ao cor de laranja antes de as laranjas chegarem cá? Não é mais uma história do ovo e da galinha – este artigo da Atlas Obscura explica como o nome da cor veio depois do fruto, e também o que se fazia antes com todas as coisas do mundo que eram, e são, cor de laranja.

 

Um Inverno refrescante

As laranjas, tão refrescantes, são um fruto de Inverno, e não de Verão, que é uma coisa que sempre me apoquentou. Quem é que se enganou nas contas? Hoje em dia encontramos laranjas durante todo o ano, é verdade, mas isso apenas disfarça (muitas vezes, com falta de sabor) este capricho. Chega a ser doloroso comer uma laranja no Inverno, sobretudo se o dia mal começou e acabámos de tirá-la da árvore.

Sempre que as apanho lembro-me, por isso mesmo, das laranjas que ficavam pousadas no muro do tanque, a apanhar sol, em casa da minha avó. Estavam ali para aquecer, para não provocarem dores de dentes nem acrescentarem mais frio ao frio já ácido do tempo invernoso. Depois de um par de horas, ou duma tarde inteira, sentávamo-nos também nós ao sol no muro do tanque e descascávamos a laranja. O cheiro ficava entranhado nos dedos até ao jantar.

Robert_Spear_Dunning_-_Still_life_with_orange_and_Natureza morta com laranja e ameixa. Robert Spear Dunning (1881)

 

Quem nunca teve preguiça de descascar uma laranja que atire a primeira pedra. Eu sei que, durante anos, tive muita. Acredito que é a isso que as tangerinas, as tângeras e as clementinas devem em parte a sua popularidade: são mais simples, dão menos trabalho, sujam menos as mãos.

Havia quem usasse a técnica de chupar a laranja: amassava-se um pouco o fruto, depois fazia-se um buraquinho com os dentes ou com uma faca (ah, quantos de nós não se arrrepiam à ideia de morder a casca duma laranja!) e, por fim, sugava-se. Sobrava sempre sumo e polpa lá dentro, faziam-se barulhos esquisitos, mas satisfazia-se a gula sem ter o trabalho de descascar.

Foi só em adulta que deixei de sentir essa preguiça. O mesmo me aconteceu com outra fruta, ainda mais exigente: a romã. Em ambos os casos, passou a ser um ritual. Pouso a laranja num prato à minha frente. Se puder, evito facas. Com os dentes ou com os dedos arranco o topo e depois vou tirando pedaços da casca, sujando as mãos quando é preciso. Como a laranja sentindo que é o prato mais precioso e requintado dum banquete. A cada gomo penso naquele sabor e naquele aroma, luxuosos e raros.

Estamos agora na época do ano em que se comem as melhores laranjas. Estão tão doces quanto podem estar, muito sumarentas, e às vezes as peles interiores já são finas, quase se desfazem quando as tocamos. Certos dias, só porque sim, a meio da manhã ponho a laranja que vou comer mais tarde numa mesa ao pé da janela, a apanhar sol. 

 

Partir o mundo em dois para vê-lo melhor: há um novo mapa da Terra

AG, 09.03.21

Chegou mais uma proposta para resolver um dos quebra-cabeças favoritos da humanidade: como representar a esfera terrestre em duas dimensões? O planeta pode continuar mais ou menos igual, nas formas dos mares e continentes, mas os mapas não param de mudar. 

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A novidade: a projecção de J. Richard Gott

Navegar é preciso. Ser rigoroso, nem tanto

Mas para que precisamos nós de um novo mapa do mundo?

Uma experiência rápida: se olharmos para um planisfério comum, daqueles dos livros escolares, qual é maior: a Gronelândia ou África? O mapa abaixo é feito de acordo com a projecção de Mercator, que ainda é o tipo de mapa mais vulgarmente usado, mesmo em alguns serviços na internet.

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Projecção de Mercator

Aqui, a Gronelândia (a grande mancha branca lá em cima) é maior do que todo o continente africano, certo? Mas esta representação não corresponde à realidade: na verdade, África é quase 14 vezes maior do que a Gronelândia.

O que sucede com este mapa de Mercator é uma das várias distorsões a que os mapas – que são planos – são sujeitos quando tentam representar a esfera terrestre (daí o nome planisfério). No fundo, é um exercício semelhante ao que faríamos se tirássemos a casca a uma laranja e tentássemos depois arranjá-la numa mesa, juntando todos os pedaços até formarmos um rectângulo sem deixar buracos pelo meio. Não há maneira de resolver este problema com rigor. Se puxamos o cobertor (ou a casca de laranja) dum lado, destapamos o outro. Se não for uma distorção da área, é da forma, ou da distância.

Gerardus Mercator era um geógrafo e cartógrafo flamengo. Em 1569 apresentou este mapa, que se tornou popular porque resolvia o problema cartográfico que na altura era mais importante: ajudar os navegadores a irem dum ponto ao outro do planeta sem erros usando a bússola. Embora inflacione as áreas dos territórios mais a Norte e mais a Sul, consegue preservar os ângulos marcados nas cartas de navegação e as direcções. Quanto mais distante do Equador, maior é a distorção. O Alaska e a Gronelândia ficam, assim, muito maiores do que são na realidade.

A projecção de Mercator manteve-se ao longo dos séculos por ser eficaz e resolver alguns problemas práticos. O próprio Google Maps só deixou de usá-la em 2018, pelo menos quando fazemos zoom out e vemos o planeta inteiro. (Fui confirmar agora se tinha havido mais alguma alteração e, estranhamente, só activando a opção 'globo' é que isso acontece. Não encontro informação actual sobre esta questão.)

Entretanto, o GPS tornou-se a principal ferramenta de navegação e, pelo menos para esse efeito, Mercator caiu em desuso.

 

Muitas maneiras bonitas de errar

Ao longo dos tempos não faltaram novas propostas de planisfério, que pretendiam corrigir os problemas do mapa de Mercator. Algumas ficaram famosas, como a de Galls-Peters (ou de Peters).  Corrige as áreas inflaccionadas por Mercator, mas distorce a forma.

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Projecção de Peters

 

Há o Dymaxion de Buckminster-Fuller: uma proposta poliédrica com ar de pássaro de origami. Podem ver aqui uma animação que mostra como funciona.

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O Dymaxion de Buckminster-Fuller

 

Ou a projecção de Winkel-III, usada pela National Geographic desde 1998. 

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Projecção de Winkel-III (ou Winkel Tripel)

 

A explicação científica e a matemática de cada uma delas são fáceis de encontrar fazendo uma pesquisa, para quem esteja interessado. Mas as motivações para os novos mapas nem sempre eram apenas científicas. O mapa de Peters, datado de 1987, queria corrigir uma visão eurocentrista do mundo: na projecção de Mercator, a Europa era beneficiada relativamente a África e à América do Sul, criando a ilusão duma dimensão geográfica (e por consequência, política e tudo o mais) que não tem.

O que surpreende em algumas destas propostas é a criatividade e a qualidade estética. Como no caso do já referido Dymaxion, ou deste Autagraph, do japonês Hajime Narukawa, que venceu um concurso de design:

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O Autagraph de Hajime Narukawa

Dois lados do mesmo planeta: o planisfério do Dr. Gott

E há quem inove com ideias tão simples que nos perguntamos como é que ninguém se lembrou disso antes. Este mapa de três cientistas –Richard Gott, Robert Vanderbei e David Goldberg –, noticiado há poucas semanas, divide o mundo ao meio, ao longo do Equador. Imprime-se o hemisfério norte num lado, e o hemisfério sul no outro. Como se fosse um disco de vinil. Ficamos, portanto, com duas meias esferas achatadas.

É verdade que não dá para ver o mundo todo ao mesmo tempo, e que virar o disco causa uma transição brusca. Mas é uma daquelas ideias tão refrescantes que nos dá a sensação de que desfizemos mais um nó que bloqueava o nosso cérebro. Além disso, segundo o seu criador, este mapa tem menos erros, dentro do que é possível, do que qualquer uma das projecções anteriores. Este vídeo mostra como funciona:

Duas sugestões:

Um artigo da National Geographic que fala de algumas ideias erradas que quase todos temos sobre a geografia do mundo.

Este vídeo da Vox explica porque é que todos os planisférios estão, de alguma forma, errados, e como funcionam as projecções.