Fuji-san: a montanha que caiu do céu (e nem sempre toca no chão)
O Monte Fuji é, na cultura tradicional japonesa, uma montanha sagrada. Eu não acredito em montanhas sagradas, mas acredito no monte Fuji. Porque apareceu-me como uma visão. E sempre que penso nele, ainda o é.
Tal como gosto de calhaus, gosto de montanhas. Ou até de pequenas colinas, se for o que tenho à mão. Quando estive em Tóquio, decidi aproveitar um dia para ir ver o Monte Fuji. Ir ver o Fuji pode ser apenas isso: vê-lo. Não implica subi-lo, que é o que eu gostaria de fazer. Mas uma pesquisa rápida fez-me perceber que a ascensão do Fuji é coisa que requer alguma preparação e tempo - sempre são quase 3800 metros de altitude. Não se vai assim dum dia para o outro.
E mesmo decidir ir só vê-lo pode ser complicado. São muitos os dias em que a neblina tapa a montanha completamente. Por isso, há vários sites com webcams que permitem saber como está o tempo no Fuji, e previsões meteorológicas especializadas para potenciais visitantes. Por sorte, havia um dia em que as condições pareciam ser boas, e arrisquei a viagem.
A região em redor do Fuji tem vários lagos. A viagem até lá faz-se de comboio - no meu caso, partindo do caos meticulosamente organizado que é a estação de Shinjuku. Apanhei um comboio regional, lento o suficiente para poder apreciar, pelo caminho, as ruas e os quintais que se avistavam pela janela. Os cais por onde passávamos estavam cheios de trainspotters: gente de todas as idades armada de câmaras fotográficas de todos os tamanhos e graus de sofisticação, a disparar quando o comboio se aproximava. Quase todos os passageiros eram japoneses: ninguém comia nem bebia nas carruagens, nem havia sons de telemóveis, numa etiqueta que ali é comum a todos os transportes públicos e que reduz muito o stress duma rede densa que transporta milhões e milhões de pessoas.
Depois da larga planície que se estende à saída de Tóquio, o comboio começou a abrandar e a circular por entre colinas, e depois ao longo de vales cada vez mais encaixados, parando em pequenas vilas durante minutos em que nada acontecia. Pelas minhas contas, faltava uma meia hora para chegar ao meu destino, perto do lago Kawaguchi, onde nesse dia decorria um festival dedicado à shibazakura - uma flor de primavera, cor-de-rosa, que cobre os terrenos.
Na verdade, eu estava um pouco triste por não poder subir o Fuji. Ver uma montanha ao longe não é, de todo, a minha ideia de ver uma montanha. Mas a perspectiva do festival - com comida, bebida e sabe Deus o que mais me esperava - era simpática.
Enquanto espreitava pela janela do comboio, tentando adivinhar de que lado me surgiria a montanha, ouvi de repente uma mulher gritar 'Fuji-san!', com alegria. Olhei na sua direcção: várias pessoas se tinham levantado. Ao longe, por cima do perfil escuro das colinas, flutuava no céu azul um pequeno cone estriado, branco e luminoso.
Quando digo que flutuava, é literal. Era uma ilusão de óptica, claro. Mas havia uma neblina ligeira em volta do monte que esbatia toda a linha da encosta e permitia confundir a montanha com o ar em volta. O Fuji era praticamente invisível excepto no topo, onde havia linhas de neve iluminada pelo sol da manhã e perfeitamente destacada do céu em volta.
Fiquei sem fala. O Fuji era uma visão, era fisicamente impossível. E de repente, desapareceu, numa curva do caminho.
E reapareceu passado um minuto, do outro lado, e de novo as expressões de espanto e admiração dos passageiros me deixaram adivinhar onde ele estava. Durante minutos, foi este o jogo naquele comboio: descobrir onde estava o Fuji. Gritar, apontar, sorrir.
O resto do dia, na verdade, foi bastante semelhante. O festival não era especialmente interessante, e depois de almoçar saí do recinto e atravessei a vila até às margens do lago. Aluguei uma bicicleta e pus-me a caminho durante um par de horas, contornando o lago pela estrada de asfalto e por caminhos de terra, indo até ao fundo dos pontões que aqui e ali permitiam entrar um pouco mais dentro do espelho de água.
De todos os lados, o objectivo era sempre o mesmo: encontrar o Fuji, aquele cone elegante e quase irreal, aquele umbigo da Terra. De repente, percebi o que tinha levado Hokusai a pintar as suas '36 vistas do monte Fuji' (e depois 100), uma empreitada que sempre me tinha parecido curiosa. Não há como não ficar a olhar para o Fuji.
Uma das 36 vistas do Monte Fuji, de Hokusai
Era uma nave espacial suspensa sobre a Terra, pensei. Uma lapa. Um bolo coberto de açúcar em pó. Um vulcão de sal, ou de poeira de gelo. De cada vez que olhava, parecia-me qualquer coisa diferente. Sempre um esplendor. Tão completamente distinto de tudo o que havia em redor - dos outros relevos, das florestas, das cidades, dos automóveis e das casas - que só podia ter vindo de outro mundo. Tentava aproximar-me o mais possível para perceber, pelo menos, a textura das encostas: que pedras, que árvores as cobriam? Mas sabia que estava demasiado longe para perceber o que quer que fosse. O Fuji ia continuar a ser apenas aquilo: uma visão.
A luz mudou e o efeito mágico da manhã foi-se desvanecendo. A linha da encosta começou a ficar mais marcada, o cone branco perdeu o brilho inicial.
O regresso foi feito num comboio muito mais lento e apinhado, com transbordos em sítios cujo nome esqueci. Até ao último momento, torci a cabeça para trás para guardar ainda mais uma imagem da montanha.