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GAZUA

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Fuji-san: a montanha que caiu do céu (e nem sempre toca no chão)

AG, 23.12.20

O Monte Fuji é, na cultura tradicional japonesa, uma montanha sagrada. Eu não acredito em montanhas sagradas, mas acredito no monte Fuji. Porque apareceu-me como uma visão. E sempre que penso nele, ainda o é.

fuji-estacao.jpgTal como gosto de calhaus, gosto de montanhas. Ou até de pequenas colinas, se for o que tenho à mão. Quando estive em Tóquio, decidi aproveitar um dia para ir ver o Monte Fuji. Ir ver o Fuji pode ser apenas isso: vê-lo. Não implica subi-lo, que é o que eu gostaria de fazer. Mas uma pesquisa rápida fez-me perceber que a ascensão do Fuji é coisa que requer alguma preparação e tempo - sempre são quase 3800 metros de altitude. Não se vai assim dum dia para o outro.

E mesmo decidir ir só vê-lo pode ser complicado. São muitos os dias em que a neblina tapa a montanha completamente. Por isso, há vários sites com webcams que permitem saber como está o tempo no Fuji, e previsões meteorológicas especializadas para potenciais visitantes. Por sorte, havia um dia em que as condições pareciam ser boas, e arrisquei a viagem.

A região em redor do Fuji tem vários lagos. A viagem até lá faz-se de comboio - no meu caso, partindo do caos meticulosamente organizado que é a estação de Shinjuku. Apanhei um comboio regional, lento o suficiente para poder apreciar, pelo caminho, as ruas e os quintais que se avistavam pela janela. Os cais por onde passávamos estavam cheios de trainspotters: gente de todas as idades armada de câmaras fotográficas de todos os tamanhos e graus de sofisticação, a disparar quando o comboio se aproximava. Quase todos os passageiros eram japoneses: ninguém comia nem bebia nas carruagens, nem havia sons de telemóveis, numa etiqueta que ali é comum a todos os transportes públicos e que reduz muito o stress duma rede densa que transporta milhões e milhões de pessoas.

fuji-lago.jpg

Depois da larga planície que se estende à saída de Tóquio, o comboio começou a abrandar e a circular por entre colinas, e depois ao longo de vales cada vez mais encaixados, parando em pequenas vilas durante minutos em que nada acontecia. Pelas minhas contas, faltava uma meia hora para chegar ao meu destino, perto do lago Kawaguchi, onde nesse dia decorria um festival dedicado à shibazakura - uma flor de primavera, cor-de-rosa, que cobre os terrenos.

Na verdade, eu estava um pouco triste por não poder subir o Fuji. Ver uma montanha ao longe não é, de todo, a minha ideia de ver uma montanha. Mas a perspectiva do festival - com comida, bebida e sabe Deus o que mais me esperava - era simpática.

Enquanto espreitava pela janela do comboio, tentando adivinhar de que lado me surgiria a montanha, ouvi de repente uma mulher gritar 'Fuji-san!', com alegria. Olhei na sua direcção: várias pessoas se tinham levantado. Ao longe, por cima do perfil escuro das colinas, flutuava no céu azul um pequeno cone estriado, branco e luminoso.

fuji-flores.jpg

Quando digo que flutuava, é literal. Era uma ilusão de óptica, claro. Mas havia uma neblina ligeira em volta do monte que esbatia toda a linha da encosta e permitia confundir a montanha com o ar em volta. O Fuji era praticamente invisível excepto no topo, onde havia linhas de neve iluminada pelo sol da manhã e perfeitamente destacada do céu em volta.

Fiquei sem fala. O Fuji era uma visão, era fisicamente impossível. E de repente, desapareceu, numa curva do caminho.

E reapareceu passado um minuto, do outro lado, e de novo as expressões de espanto e admiração dos passageiros me deixaram adivinhar onde ele estava. Durante minutos, foi este o jogo naquele comboio: descobrir onde estava o Fuji. Gritar, apontar, sorrir.

O resto do dia, na verdade, foi bastante semelhante. O festival não era especialmente interessante, e depois de almoçar saí do recinto e atravessei a vila até às margens do lago. Aluguei uma bicicleta e pus-me a caminho durante um par de horas, contornando o lago pela estrada de asfalto e por caminhos de terra, indo até ao fundo dos pontões que aqui e ali permitiam entrar um pouco mais dentro do espelho de água.

fuji-parking.jpg

De todos os lados, o objectivo era sempre o mesmo: encontrar o Fuji, aquele cone elegante e quase irreal, aquele umbigo da Terra. De repente, percebi o que tinha levado Hokusai a pintar as suas '36 vistas do monte Fuji' (e depois 100), uma empreitada que sempre me tinha parecido curiosa. Não há como não ficar a olhar para o Fuji.

fuji-hokusai.jpgUma das 36 vistas do Monte Fuji, de Hokusai

Era uma nave espacial suspensa sobre a Terra, pensei. Uma lapa. Um bolo coberto de açúcar em pó. Um vulcão de sal, ou de poeira de gelo. De cada vez que olhava, parecia-me qualquer coisa diferente. Sempre um esplendor. Tão completamente distinto de tudo o que havia em redor - dos outros relevos, das florestas, das cidades, dos automóveis e das casas - que só podia ter vindo de outro mundo. Tentava aproximar-me o mais possível para perceber, pelo menos, a textura das encostas: que pedras, que árvores as cobriam? Mas sabia que estava demasiado longe para perceber o que quer que fosse. O Fuji ia continuar a ser apenas aquilo: uma visão.

A luz mudou e o efeito mágico da manhã foi-se desvanecendo. A linha da encosta começou a ficar mais marcada, o cone branco perdeu o brilho inicial. 

O regresso foi feito num comboio muito mais lento e apinhado, com transbordos em sítios cujo nome esqueci. Até ao último momento, torci a cabeça para trás para guardar ainda mais uma imagem da montanha.

 

F é mistério e outros mistérios da infância

AG, 20.12.20

Quando era criança, muitas coisas me pareciam incompreensíveis. Por exemplo: como é que a minha mãe sabia qual o autocarro que devia apanhar, entre todos os autocarros que paravam ali? E porque é que os adultos tinham dores de estômago? Mas alguns dos mistérios que mais me ocupavam o pensamento tinham a ver com palavras. Deixo-os aqui. E convido-vos a partilharem os vossos nos comentários.

 

F é mistério

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Este é provavelmente o meu preferido. Era uma expressão que ouvia diariamente na rádio. Porque é que F era mistério? Porque é que os locutores diziam aquilo tantas vezes? Só ao fim de muitos anos percebi, ao ver escrito, que afinal 'FM Stereo'.

 

Cuberru

Passei toda a minha infância - e parte da adolescência - sem perceber a letra do Atirei o pau ao gato. Pelo menos aquela parte em que se dizia 'cuberru cu gato deu'. Cuberru, pensava eu, era uma coisa que o gato dava ou fazia. Um barulho qualquer? Um movimento brusco, que assustou a Dona Chica? E porquê aquele 'cu' depois de 'cuberru'? Já tinha 17 anos quando um dia, na praia, a minha tia se pôs a cantar a música e, talvez pela dicção dela, fez-se luz no meu espírito.

 

O vaqueiro, a minha mãe e a mulher dele

Vaqueiros com gado (vacas)

Anos 70 lá em casa. Ao longo de meses, todas as semanas tocava à nossa porta uma senhora. Nunca entrava. A minha mãe, depois de falar com ela e fechar, dizia-nos: 'Era a mulher do vaqueiro'. Eu ficava a pensar: quem era o vaqueiro? Devia ter alguma coisa a ver com vacas, isso era claro. Mas porque é que a mulher dele vinha a nossa casa, e fazer o quê, se nunca entrava? Mais tarde descobri que, na verdade, era a mulher do faqueiro. A minha mãe estava a comprar um faqueiro a prestações àquela mulher. Depois desta revelação, só precisei de mais uns meses para descobrir o que era um faqueiro.

 

Mistura-se tudo muito bem...

Foi uma amiga minha quem me falou pela primeira vez no período. Tínhamos ambas nove anos. Falou-me da ovulação, do sangue, e depois disse-me que se chamava a tudo aquilo menstruação. Só que eu percebi misturação - porque, tendo a ver com a função reprodutora, achei que era qualquer resultado da mistura entre óvulos e espermatozóides. Felizmente, poucos meses mais tarde li a palavra e a explicação num livro da escola e fiquei muito aliviada. Na minha cabeça, era estranho e assustador que o sexo e a fertilização do óvulo envolvessem sangue.

 

Quem canta seus cantos... não, espera

EN_114_-_Casa_dos_Cantoneiros_2.jpgFoto: GC.KER CACHE'Team - Own work, CC BY-SA 4.0 

Esta é uma confusão partilhada, descobri recentemente, por outras pessoas: lembram-se de haver, ao longo das estradas nacionais, as Casas do Cantoneiro? Podem saber aqui, resumidamente, como surgiram. Eram casas de apoio aos operários que faziam a conservação das estradas. Mas eu, sem saber o que era um cantoneiro, imaginava que tinha alguma coisa a ver com pessoas que cantavam. Uma outra pessoa que também teve esta dúvida na infância diz que pensava que eram pessoas que faziam cantos. Podíamos juntar ambas as ideias e sugerir que eram pessoas que cantavam nos cantos das casas.

 

E vocês, que confusões têm para confessar? Partilhem nos comentários.