O Meia-Hora, o Surfista e o Presidiário: uma carta aos picas da minha juventude
Muitos anos a andar de transportes públicos dão nisto: há pessoas que acabamos por ver todos os dias. Vemo-los crescer, ou engordar, ou envelhecer, ou aparecer, algum dia, com uma criança pela mão. Ou abraçados a outra pessoa que não a do costume. Ou deixam de vestir calças de ganga e t-shirt e passam a ir de fato e gravata.
Tudo o que sabemos deles está fechado naqueles minutos dentro das carruagens, eventualmente no cais. Que livros lêem, que séries vêem no smartphone? Que hábitos irritantes têm - falam com o telemóvel em alta-voz, põem música, deixam migalhas nos assentos? Às vezes, a viagem é tempo suficiente para imaginarmos muita coisa das suas vidas, para lá da janela do comboio.
Menos, parece-me, em relação aos revisores, e no entanto eles também estão lá. Há contos ou músicas sobre revisores? Só conheço O Pica do 7, do António Zambujo. Podia haver mais, porque seguramente há muitas histórias ali perdidas nos uniformes. Como em todas as vidas de pessoas cujo trabalho é lidar com outras pessoas - desde passageiros adormecidos ao ponto da hibernação, a adolescentes sem bilhete em fuga, a maluquinhos em monólogos sonoros e intermináveis, a homens e mulheres que de súbito se sentem mal. Nós todos, portanto, em algum momento.
Na minha carreira de passageira houve três revisores que me faziam sempre pensar que vida seria a deles fora do comboio, fora do uniforme. São eles o Meia-Hora, o Surfista e o Presidiário.
O Meia-Hora era um homem de meia idade baixinho, meio careca, de óculos. Tinha esta alcunha porque parava sempre longamente a falar com alguém. Não com pessoas conhecidas - qualquer bom desconhecido servia. Falava nem sei de quê. Metia conversa, como costuma dizer-se. Fazia perguntas, comentava o tempo, contava uma história que se tivesse passado com ele.
Uma vez encontrou um amigo, que ia muito cansado mas não queria adormecer porque tinha medo de deixar passar a estação de saída. O Meia-Hora tranquilizou-o: 'Dorme à vontade, que quando estivermos a chegar eu acordo-te.' Aquilo foi um gesto bonito: o outro sorriu de alívio e encostou-se para dormir.
O Meia-Hora, então, sentou-se mesmo ao lado da porta de ligação com a carruagem seguinte. E de cada vez que alguém entrava, ele levava a mão aos lábios e dizia: 'Shhhhh! Está ali um bebé a dormir...'. Quando nos aproximámos da estação, acordou o amigo com um grito.
Nesse dia, fui eu a desconhecida seleccionada pelo Meia-Hora. Quando me pediu o passe, ficou a contar a história da vida daquele seu amigo - como se levantava às 4h00 para ir trabalhar, e só voltava às 18h00 e por isso andava sempre com sono, e de como devíamos fazer o que estava ao nosso alcance para ajudar as pessoas, etc..
O Surfista era ainda novo - na casa dos 20-30 anos. Tinha uma daquelas caras que podiam tê-lo levado a ser modelo: queixo marcado, dentes simétricos e bem desenhados, maçãs do rosto altas, olhos azuis. O cabelo louro, comprido, preso num rabo de cavalo bem puxado. Chamávamos-lhe surfista por causa do cabelo, nada mais. O olhar e a expressão eram suficientemente frios para não o tornar, para mim, atraente, mas via-se que gostava de passear o seu estilo pelas carruagens e devia haver quem apreciasse. Estou certa de que deu matéria para alguma história como a do pica do 7.
O Presidiário era a personagem mais marcante. Não sou capaz de imaginar que idade teria quando o conheci. Era alto, muito magro, ombros encolhidos, um pouco curvado. Tinha uma barba rala e o cabelo escuro, meio ondulado, com risco ao lado, preso num rabo de cavalo flácido na base da nuca. Ao contrário do surfista, que tinha o rabo de cavalo um pouco mais acima, mais esticado e vigoroso.
As mãos do Presidiário eram muito brancas, os dedos ossudos e as unhas longas. Não eram só compridas, no sentido em que ele não as cortava rente: toda a parte da unha era mesmo longa, e era impossível não ficar a olhá-las quando lhe estendíamos o bilhete. Parecia ter ficado congelado nos anos 70: as calças sempre justas nas coxas magras, largas em baixo, a camisa colada ao peito fraco. Se o encontrasse numa rua escura e estivesse sozinha, ter-me-ia encolhido.
Porque lhe chamávamos Presidiário? Bom, corria o boato de que ele tinha estado preso. Isso justificaria o ar sempre carregado (aqui podia ter escrito 'cenho carregado', e ficava bem), o olhar colado ao chão, não dizer nunca uma palavra nem esboçar um sorriso. Mas é provável que isto fosse mesmo apenas um boato. Um detalhe reforçava esta estranheza da sua figura: todos os outros tinham na camisa do uniforme um dístico com o nome e o apelido. Ele, tinha apenas apelido: 'Figueira'. O Presidiário.
Vi o Presidiário no comboio anos a fio (nunca o ouvi), sempre com aquele ar de quem não apanhava sol há décadas. O que faria aquele homem fora do trabalho? Como seria a casa duma criatura assim fechada e pesada, com ar de quem passa fome? Não conseguia imaginar que roupa vestiria sem ser o uniforme cinzento da CP.
Pois esta manhã vi o Presidiário na rua. Vestia uns calções caqui, sandálias e uma camisa com padrão colorido de palmeiras. Ora toma.