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GAZUA

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O Meia-Hora, o Surfista e o Presidiário: uma carta aos picas da minha juventude

AG, 26.08.20

Muitos anos a andar de transportes públicos dão nisto: há pessoas que acabamos por ver todos os dias. Vemo-los crescer, ou engordar, ou envelhecer, ou aparecer, algum dia, com uma criança pela mão. Ou abraçados a outra pessoa que não a do costume. Ou deixam de vestir calças de ganga e t-shirt e passam a ir de fato e gravata.

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Tudo o que sabemos deles está fechado naqueles minutos dentro das carruagens, eventualmente no cais. Que livros lêem, que séries vêem no smartphone? Que hábitos irritantes têm - falam com o telemóvel em alta-voz, põem música, deixam migalhas nos assentos?  Às vezes, a viagem é tempo suficiente para imaginarmos muita coisa das suas vidas, para lá da janela do comboio.

Menos, parece-me, em relação aos revisores, e no entanto eles também estão lá. Há contos ou músicas sobre revisores? Só conheço O Pica do 7, do António Zambujo. Podia haver mais, porque seguramente há muitas histórias ali perdidas nos uniformes. Como em todas as vidas de pessoas cujo trabalho é lidar com outras pessoas - desde passageiros adormecidos ao ponto da hibernação, a adolescentes sem bilhete em fuga, a maluquinhos em monólogos sonoros e intermináveis, a homens e mulheres que de súbito se sentem mal. Nós todos, portanto, em algum momento.

Na minha carreira de passageira houve três revisores que me faziam sempre pensar que vida seria a deles fora do comboio, fora do uniforme. São eles o Meia-Hora, o Surfista e o Presidiário.

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O Meia-Hora era um homem de meia idade baixinho, meio careca, de óculos. Tinha esta alcunha porque parava sempre longamente a falar com alguém. Não com pessoas conhecidas - qualquer bom desconhecido servia. Falava nem sei de quê. Metia conversa, como costuma dizer-se. Fazia perguntas, comentava o tempo, contava uma história que se tivesse passado com ele.

Uma vez encontrou um amigo, que ia muito cansado mas não queria adormecer porque tinha medo de deixar passar a estação de saída. O Meia-Hora tranquilizou-o: 'Dorme à vontade, que quando estivermos a chegar eu acordo-te.' Aquilo foi um gesto bonito: o outro sorriu de alívio e encostou-se para dormir.

O Meia-Hora, então, sentou-se mesmo ao lado da porta de ligação com a carruagem seguinte. E de cada vez que alguém entrava, ele levava a mão aos lábios e dizia: 'Shhhhh! Está ali um bebé a dormir...'. Quando nos aproximámos da estação, acordou o amigo com um grito.

Nesse dia, fui eu a desconhecida seleccionada pelo Meia-Hora. Quando me pediu o passe, ficou a contar a história da vida daquele seu amigo - como se levantava às 4h00 para ir trabalhar, e só voltava às 18h00 e por isso andava sempre com sono, e de como devíamos fazer o que estava ao nosso alcance para ajudar as pessoas, etc..

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O Surfista era ainda novo - na casa dos 20-30 anos. Tinha uma daquelas caras que podiam tê-lo levado a ser modelo: queixo marcado, dentes simétricos e bem desenhados, maçãs do rosto altas, olhos azuis. O cabelo louro, comprido, preso num rabo de cavalo bem puxado. Chamávamos-lhe surfista por causa do cabelo, nada mais. O olhar e a expressão eram suficientemente frios para não o tornar, para mim, atraente, mas via-se que gostava de passear o seu estilo pelas carruagens e devia haver quem apreciasse. Estou certa de que deu matéria para alguma história como a do pica do 7.

O Presidiário era a personagem mais marcante. Não sou capaz de imaginar que idade teria quando o conheci. Era alto, muito magro, ombros encolhidos, um pouco curvado. Tinha uma barba rala e o cabelo escuro, meio ondulado, com risco ao lado, preso num rabo de cavalo flácido na base da nuca. Ao contrário do surfista, que tinha o rabo de cavalo um pouco mais acima, mais esticado e vigoroso.

As mãos do Presidiário eram muito brancas, os dedos ossudos e as unhas longas. Não eram só compridas, no sentido em que ele não as cortava rente: toda a parte da unha era mesmo longa, e era impossível não ficar a olhá-las quando lhe estendíamos o bilhete. Parecia ter ficado congelado nos anos 70: as calças sempre justas nas coxas magras, largas em baixo, a camisa colada ao peito fraco. Se o encontrasse numa rua escura e estivesse sozinha, ter-me-ia encolhido.

Porque lhe chamávamos Presidiário? Bom, corria o boato de que ele tinha estado preso. Isso justificaria o ar sempre carregado (aqui podia ter escrito 'cenho carregado', e ficava bem), o olhar colado ao chão, não dizer nunca uma palavra nem esboçar um sorriso. Mas é provável que isto fosse mesmo apenas um boato. Um detalhe reforçava esta estranheza da sua figura: todos os outros tinham na camisa do uniforme um dístico com o nome e o apelido. Ele, tinha apenas apelido: 'Figueira'. O Presidiário.

Vi o Presidiário no comboio anos a fio (nunca o ouvi), sempre com aquele ar de quem não apanhava sol há décadas. O que faria aquele homem fora do trabalho? Como seria a casa duma criatura assim fechada e pesada, com ar de quem passa fome? Não conseguia imaginar que roupa vestiria sem ser o uniforme cinzento da CP.

Pois esta manhã vi o Presidiário na rua. Vestia uns calções caqui, sandálias e uma camisa com padrão colorido de palmeiras. Ora toma.

Porque é que as roupas de mulher quase não têm bolsos?

AG, 13.08.20

Quantas mulheres não andaram já pelo seu local de trabalho com o telemóvel, o porta-moedas, o cartão da empresa ou um par de chaves nas mãos, sem ter um sítio prático onde guardá-los? Já para os homens, é fácil: qualquer casaco ou par de calças tem uma coisa maravilhosa, um daqueles elementos de design discretos e geniais: chama-se bolso. E normalmente é grande.

1024px-Mannequin_with_jeans.jpgfoto: Lion Hirth (Prissantenbär) - licença CC BY-SA 3.0

 

Coisas que a fita métrica confirma

Entremos numa loja de roupa. Na secção de homem, praticamente tudo - das calças às camisas e aos casacos - tem pelo menos um bolso. E quando falo de bolso é uma cavidade que permite, de facto, guardar coisas. Se depois formos ver a secção de mulher, o cenário é o oposto. Não só as roupas quase não têm bolsos, como os poucos que há raramente são funcionais: são pequenos, ficam em zonas angulosas que vão deformar os objectos, e às vezes até estão apenas a enfeitar.

Tentem enfiar um smatphone nos bolsos de um par de calças de ganga de mulher (para usar o exemplo duma roupa completamente massificada) e perceberão o que se entende por falta de 'bolsos funcionais'.

O The Pudding publicou em 2018 um estudo que comparava os tamanhos de bolsos de calças de ganga de homem e de mulher para chegar à conclusão que já se esperava, e dar-lhe números: mesmo quando há bolsos, nas calças de mulher estes têm metade do tamanho.

Alguns dirão que as mulheres trazem consigo tanta tralha que precisam sempre de uma carteira. Mas não só isso não é verdade universal (nem todas as mulheres carregam toda a tralha para onde quer que vão), como é apenas uma parte da vida das mulheres. Há muitas situações, como estar durante o dia num escritório ou armazém, em que ter bolsos dava mesmo muito jeito. Porque ninguém se levanta para ir tirar um café ou para ir até uma sala de reuniões levando consigo a carteira.

 

Uma breve história dos bolsos

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Camponeses do século XV - com bolsa à cintura.

De onde vem esta diferença? Como para tudo, há uma história. A história da moda e dos bolsos. Há vários artigos online que explicam como, através dos tempos, a roupa masculina e feminina não teve, passou a ter, e finalmente deixou (ou não) de ter bolsos. O site do Victoria and Albert tem uma página com ilustrações que mostram como eram os bolsos de outros séculos - e vale a pena ler para descobrirmos também o que era guardado nesses bolsos.

Um resumo breve (podem ler uma história mais completa e ilustrada por exemplo neste artigo da Verve): na época medieval, homens e mulheres usavam bolsas que prendiam à cintura para guardar alguns objectos importantes. As bolsas ficavam por dentro da roupa, e esta tinha fendas que permitiam aceder-lhes. No século XVII surge uma inovação: em vez de bolsas separadas, passaram a usar-se bolsas cosidas nas próprias peças de roupa. E assim nasciam os bolsos, para ambos os sexos.

Há quem sugira também que, durante a Revolução Francesa, foram banidos quaisquer bolsos da roupa das mulheres, para que elas não pudessem transportar às escondidas material  perigoso.

No entanto, a evolução da roupa das mulheres, com camadas sempre mais complicadas e de difícil acesso, tornou os bolsos pouco práticos. Mais tarde, quando os vestidos se tornaram mais justos ao corpo, os bolsos eram igualmente um elemento difícil de acondicionar. E assim, a roupa feminina - pelo menos a de uma certa classe - perdeu os bolsos. Surgiram umas carteiras ou bolsas minúsculas, onde não cabia quase nada.

Mas não se tratava apenas de uma limitação imposta pela moda. Isto correspondia também ao papel social das mulheres: não tinham propriedade, não tinham dinheiro, não tinham actividades 'produtivas' a fazer, era suposto estarem o mais possível em casa - para que precisavam de bolsos, de ter e de transportar coisas? Há quem sugira também que, durante a Revolução Francesa, foram banidos quaisquer bolsos da roupa das mulheres, para que elas não pudessem transportar às escondidas material perigoso.

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Roupa feminina de inícios do século XX

E assim fomos perdendo os bolsos. No final do século XIX, com o crescimento do movimento sufragista, e durante a I Grande Guerra, quando as mulheres desempenharam trabalho que até então cabia aos homens, agora ausentes na guerra, houve campanhas para devolver às mulheres um vestuário mais funcional (que, claro, incluía bolsos). Mas assim que os homens voltaram da guerra a moda dominante voltou a privilegiar as roupas mais 'femininas', os cortes justos, os tecidos frágeis, o vestuário menos funcional.

 

Uma mão no bolso, outra na enxada: ou como podemos ter esperança

Já as malas ou carteiras parecem ter crescido, em tamanho, na mesma proporção em que os bolsos diminuiram ou desapareceram. Não só as malas como objecto, mas o valor da indústria que vive de as fabricar e vender.

E não, uma coisa não substitui a outra: porque uma mala é uma coisa que atrapalha os movimentos, ocupa pelo menos um braço e é motivo de preocupação constante: pode ser roubada, não há sítio para pousá-la num restaurante, vai sujar-se se ficar no chão, etc.. Costumo dizer que a emancipação das mulheres só será plena quando puderem usar livremente ambas as mãos. E nesta equação não há espaço para malas.

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Felizmente, já há marcas de roupa que perceberam como algumas mulheres anseiam por ter roupa com bolsos . São cada vez mais e, maravilha!, têm lojas online.

Havemos de chegar lá. A esse dia em que todos poderemos andar de mãos nos bolsos - e as mãos vão caber nos bolsos.

 

Tem calma, Zé Carlos: é só uma máquina a falar contigo

AG, 04.08.20

Os chatbots vieram para ficar. Mas este ficar, às vezes, é como o daquelas visitas irritantes de que não conseguimos livrar-nos, mesmo que as tratemos mal. O que vale é que tudo isto pode servir, pelo menos, para nos rirmos.

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Imagem: James Royal-Lawson, licença CC By-SA 2.0

Mim, Tarzan. Tu, chatbot

Há dias entrei no site duma grande empresa portuguesa. Precisava de esclarecer uma dúvida. O menu não me ajudava a encontrar o caminho, a pesquisa não dava resultados relevantes. Foi então que decidi experimentar a janela de chat que estava a piscar-me o olho desde o início da visita.

Os chatbots são cada vez mais usados pelas empresas nas situações em que a interacção com os clientes tem algum grau de previsibilidade. Alguns têm dado provas da sua eficácia a resolver tarefas simples (comprar uns ténis, reservar uma viagem, saber as cotações da bolsa). Além disso, têm disponibilidade horária total e são uma alternativa para aquelas pessoas que preferem não ter de falar com... outras pessoas. Mas nem sempre corre bem.

Escrevi a minha pergunta. O chatbot não percebeu e propôs-me dois ou três temas que não tinham a ver com o que eu queria saber. Fiz a mesma pergunta, escolhendo outras palavras e usando uma frase mais básica. O chatbot voltou a não perceber, e insistiu nas opções que já me tinha mostrado e que eu tinha ignorado.

Suspirei, parei a pensar, e tentei de novo ('mas que língua fala este bicho?') -  agora numa lógica de palavras-chave em vez de frases com sintaxe. ‘Computer says no’, como no sketch do Little Britain. O chatbot insistiu em apresentar-me o menu que tinha para me oferecer desde o início. Desisti de ser uma pessoa adulta e tecnologicamente sofisticada. Escrevi: ‘Este chatbot é burro e irritante!’. Ele voltou a não perceber e mostrou-me... as mesma duas ou três opções iniciais.

Não foi a primeira vez que tive uma interacção frustrante com um destes sistemas. Lembrei-me de alguns vídeos hilariantes em que pessoas tentam, em vão, comunicar com a Alexa ou com a Siri, que ou não percebe as palavras, ou o sotaque, ou qualquer outra coisa.

Poucas coisas parecem tão ridículas como uma tecnologia de ponta a dar um grande trambolhão.

E como já vi a infância e adolescência de algumas das tecnologias que agora estão em fase madura, percebo que a inteligência que alimenta estes chatbots está ainda a dar os primeiros passos, e isso gera grandes frustrações. Quanto mais avançada nos parece uma tecnologia (alguém se lembra do que era o WAP?), mais desapontados e irritados ficamos com as muitas lacunas que ela tem até atingir aquele estado em que se torna uma segunda pele e em que as falhas são episódicas.

Conseguir que uma máquina converse connosco, nos compreenda e responda de forma adequada é um feito admirável, mas há-de passar-se algum tempo até que funcione sem tropeções. As nuances do discurso, o humor, a ironia, são territórios obscuros, até para os humanos. A sensação com que ficamos, por vezes, é a de que estamos a almoçar nos Tempos Modernos do Chaplin.

Há casos que ficam para a história dos grandes estatelanços tecnológicos na área da inteligência artificial e especificamente destes chatbots. Por exemplo, o de Tay, da Microsoft. Tay aprendia conversando com humanos: foi criado para interagir com os utilizadores mais jovens no Twitter, em 2016. Em menos de um dia, a partir daquilo que aprendeu, Tay começou a publicar mensagens racistas e a negar o holocausto. E a empresa fê-lo desaparecer.

Coitadinhos, eles não sabem o que dizem...

Mas além das irritações de ‘para que é que inventaram isto, se esta porcaria não funciona e só faz perder tempo?’ e de alguns desastres como o de Tay, há episódios com os quais podemos divertir-nos. Vários sites têm compilado diálogos homem-máquina que merecem o nosso carinho (pesquisem 'chatbot fails' ou 'funny chatbot fails').

Desde Poncho, o bot meteorológico que conhecia os dias da semana mas não conseguiu computar o que era o 'fim de semana'.

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Até conversas de surdos, muito parecidas com as que temos com algumas pessoas.

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Até algumas dificuldades em acompanhar os caminhos que um diálogo pode tomar. Ou, como num dos programas do Herman: "Disponha." "Ponha, já disse."

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É aproveitar enquanto dura. Já há empresas a investirem em inteligência emocional artificial e os bots têm todo o tempo do mundo e um universo fabuloso de dados disponível para aprenderem. Até que cheguemos a essa fase, nada como aquele saborzinho a alívio e vingança que sentimos por acharmos que ainda somos mais espertos do que as máquinas.