Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

GAZUA

GAZUA

Não, Einstein não disse isso: 9 citações erradas que todos conhecemos (mais uma para o caminho)

AG, 28.07.20

Uma frase inspiradora por dia, nem sabe o bem que lhe fazia: excepto quando essa frase não é, afinal, daquela pessoa que todos admiramos.

einstein-quotes.jpg

Não há como escapar às citações de grandes personalidades que todos os dias aparecem nos feeds das redes sociais. Se estiverem numa imagem com a cara da pessoa que alegadamente disse aquela frase, como os santinhos das orações, mais ainda. E o impulso de partilhar, se nos identificarmos com o que é dito, é quase irresistível. 

Acontece que raramente nos damos ao trabalho de verificar se aquela pessoa, de facto, disse aquela frase. Confiamos, mesmo sem sabermos de onde vem. E isto não é novo: há muitas citações famosas que já eram mal atribuídas muito antes das redes sociais e da internet. 

De todas as personalidades a quem são atribuídas as mais variadas grandes frases, há duas vítimas clássicas que parecem ter dito tudo e um par de botas: Einstein e Mandela. É fácil darmos atenção a qualquer coisa que tenha sido dita por um génio ou por alguém de enorme estatura moral. E, como veremos adiante, nem sempre isso é inofensivo.

 

Para já, a lista: 9 citações mal atribuídas

 

1 - “A diferença entre a estupidez e o génio é que o génio tem limites”  – Albert Einstein

Einstein inaugura a nossa lista. A frase já foi localizada em textos franceses do século XIX e, em inglês, também antes de Einstein

 

2 - “A nossa maior glória não é nunca cairmos, mas erguermo-nos de cada vez que caímos”  – Nelson Mandela

Mandela disse esta frase, como nós dizemos tantas vezes ‘tudo vale a pena se a alma não é pequena’, sem nos darmos ao trabalho de referir que estamos a citar Fernando Pessoa. Mas a frase não é dele: está escrita pelo menos desde o século XVIII (podem ver a longa história da expressão nesta página), sendo atribuída, num livro, a um viajante chinês.

 

3 -"Se fui capaz de ver mais longe, foi por estar sobre os ombros de gigantes"  – Isaac Newton

Esta frase célebre, que muitos atribuem a Newton, não é uma expressão original do cientista. Newton usou-a numa carta, mas ela já tinha sido usada no século XII pelo teólogo John de Salisbury. E, quem sabe, por alguém antes dele. Mais aqui.

 

4 - “Se nao têm pão, comam brioche!”  – Maria Antonieta

Fiquei muito desapontada quando soube que a rainha francesa, afinal, não disse esta frase nos dias agitados da Revolução Francesa. Rousseau fala, nas suas Confissões, duma rainha que se saiu com um ‘Comam brioche!”. Só que esse livro foi escrito anos antes da revolução francesa.

mariaantonieta-brioche.jpg

5 - “Podemos enganar toda a gente em alguns momentos e algumas pessoas em todos os momentos, mas não é possível enganar toda a gente em todos os momentos”  – Abraham Lincoln

Lincoln também é, como seria de esperar, um íman de falsas citações. Esta espécie de adágio popular, no entanto, já existia por escrito, numa forma bastante semelhante, no século XVII, e foi incluído na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert de 1754. Pode até ser que Lincoln tenha dito a frase, mas não é uma criação sua.

 

6 - “O génio é 1% de inspiração e 99% de transpiração”  – Thomas Edison

Pois é, já vimos esta frase atribuída se calhar a uma dúzia de pessoas diferentes. Quem não gostaria de ter-se lembrado de uma coisa tão inteligente  – de preferência, sem grande esforço?

Um dos candidatos a autor desta frase é Thomas Edison. Aparentemente, a ideia já circulava antes dele, já tinha sido enunciada de várias formas, e Edison apenas acrescentou os números. Uma explicação mais elaborada, com todas as fontes, nesta página.

editon-genio.jpg

7- “Não concordo com o que diz, mas defenderei até à morte o seu direito a dizê-lo”  – Voltaire

Não há nenhum registo escrito do filósofo francês com esta frase, que tão bem encaixa no espírito das suas ideias. A frase aparece numa biografia de Voltaire escrita por Evelyn Beatrice Hall e publicada em 1904. A autora não afirma, sequer, que a frase é de Voltaire - usa-a como síntese da sua forma de pensar.

 

8 - “A morte de uma pessoa é uma catástrofe. A morte de milhões é uma estatística”  – Josef Estaline

Calhava bem que alguém com os pergaminhos dizimadores de Estaline fosse autor desta frase. Mas o líder soviético afinal não a disse. A frase é dum livro satírico do alemão Kurt Tucholsky, de 1923.

 

9 - “Elementar, meu caro Watson”  – Sherlock Holmes/ Conan Doyle

Se, como eu, são fãs dos livros de Sherlock Holmes, esta é dura de aceitar. A frase não aparece em nenhum dos livros de Holmes, embora haja expressões próximas  – como ‘meu caro Watson’. Mas desta forma exacta, aparece apenas no livro Psmith Journalist, de Wodehouse, um admirador de Conan Doyle. O livro está disponível no Gutenberg.

 

Mas qual é o mal? Se as frases são boas...

De algumas destas confusões pode não vir mal ao mundo. Até porque muitos dos que originalmente as disseram não estão cá para queixar-se. Mas há manipulações deliberadas: atribuem-se frases a personalidades que, pelo seu perfil, inspiram confiança às pessoas.

E aí somos todos humanos: se uma personalidade poderosa ou inteligente diz uma coisa com que eu concordo, sinto-me legitimado nas minhas opiniões. Sinto-me, por contágio, uma pessoa inteligente, e sinto que tenho razão (que é, como sabemos dos debates online, uma convicção por vezes perigosa).

Um exemplo: há meses circulou um meme com o retrato do ex-presidente da República, general Ramalho Eanes. O texto dizia o seguinte:

 

"A desobediência civil não é o nosso problema. O nosso problema é a obediência civil. O nosso problema é que pessoas por todo o mundo têm obedecido às ordens de líderes e milhões têm morrido por causa dessa obediência. O nosso problema é que as pessoas são obedientes por todo o mundo face à pobreza, fome, estupidez, guerra e crueldade. O nosso problema é que as pessoas são obedientes enquanto as cadeias se enchem de pequenos ladrões e os grandes ladrões governam o país. É esse o nosso problema".

 

O contexto era ideal: dum lado, um país a braços com escândalos de corrupção e com o sentimento de que os criminosos ficam impunes, além de outras insatisfações. Do outro, alguém como Eanes (que manteve sempre a reputação de figura honesta e já se afastou do poder há tempo suficiente para quase ninguém estar zangado com ele) apela à desobediência.

É como dar a bênção, não só à justeza do descontentamento, mas também à legitimidade de desobedecer (e não estou a defender ou a demarcar-me desta visão do problema - podia ser qualquer outra frase). Se até o Eanes o diz...

É claro, a citação é falsa, como o Polígrafo mostrou  – e não há mesmo dúvidas, porque o livro de onde ela foi tirada está identificado.

eanes-citacao.jpg

Não parecia de todo o tipo de coisa que Eanes, um militar, dissesse em público  – e muito menos deixasse escrito. Mas sabe-nos bem ter alguém que respeitamos a pôr em palavras (bonitas, ainda por cima) o que no fundo já pensávamos, e o espírito crítico desaparece antes de acabarmos de ler a primeira linha. Eanes provavelmente também não gostou de que usassem a sua imagem para isto.

Quem quer que criou este meme sabe bem como funciona a manipulação. E os casos visíveis deste fenómeno são cada vez mais, e correm cada vez mais depressa.

Seja qual for a frase, qualquer que seja o seu impacto, a higiene dos factos é sempre um excelente princípio

Haverá quem encolha os ombros, mesmo sabendo que as citações estão erradas, porque entendem que ‘dizem a verdade' e isso é que interessa.

O grande perigo não está naquelas, relativamente inócuas, mas em outras, como a de Eanes, talvez partilhadas com o mesmo encolher de ombros, e que ampliam cada vez mais manipulações políticas.

Seja qual for a frase, qualquer que seja o seu impacto, a higiene dos factos é sempre um excelente princípio, seja para citações, seja para outros materiais. E não havendo certezas, mais vale não partilhar.

 

E como é que sabemos se a citação é autêntica?

A má notícia é: dá trabalho. Sempre que encontramos uma frase que nos faz dizer ‘Ah, é isto mesmo! Vou enviar aos meus amigos’ ou 'Na mouche!' ou 'Ora aqui está uma grande verdade!'  – é bom desconfiarmos. De nós mesmos, antes de mais.

Por vezes, uma pesquisa simples, sempre com a comparação de várias fontes, e que estas por sua vez indiquem onde fizeram a verificação, permite perceber se a citação é legítima. 

Pesquisar online o texto da frase, seguido do nome do autor e de ‘fake quote’ ou ‘falso’, ou outra expressão que o motor de busca entenda, é um caminho.

Há também sites especializados neste tema, como os impressionantes Quote Investigator e The Phrase Finder.

O Polígrafo tem também feito algum trabalho de verificação a propósito de citações bombásticas, recentes, atribuídas a políticos  – e aceitam discos pedidos; é questão de lhes propormos uma citação.

 

Que horas são? Hora da carrinha da mercearia

AG, 20.07.20

Quem se lembra da música das carrinhas amarelas da Family Frost? Havia até um toque de telemóvel com esse "jingle". Há anos que não as vejo, e suponho que já não existem. Mas o que continua a resistir, sempre e teimosamente, são os merceeiros ambulantes.

110312305_682315388987790_8456283940835572434_n.jp

E se de repente, no meio do silêncio e da modorra duma aldeia, alguém tocar uma buzina, isso é a carrinha das mercearias. Ou do pão, ou do peixe, ou da roupa. As opções são várias, mas o formato não muda muito.

Ninguém vai lembrar-se de chamar-lhes empreendedores - essa palavra que normalmente vem barrada e embrulhada numa película sexy e luzidia de tecnologia. Mas é isso que são. Pessoas que perceberam que, à medida que as pequenas lojas e tabernas de aldeia fechavam, abria-se ali uma oportunidade.

As lojas foram fechando por falta de clientes, por dificuldades dos donos em gerir deslocações e fornecimentos, ou outros motivos que não sei adivinhar. E os poucos habitantes das aldeias não podem ir à loja. Ou porque não há loja. Ou porque para ir à cidade mais próxima é preciso carro. Ou, se tiverem a sorte de até ter transportes públicos, nem que seja uma vez ao dia, é preciso além disso saúde para carregar com o peso das compras.

Se o cliente não vai à loja, a loja vai às aldeias.

Não é um sistema muito diferente dos almocreves de outros tempos, ou de qualquer dos vendedores ambulantes que percorriam o país até há poucas décadas. Mas por isso mesmo - por esta capacidade de ver que para andar para a frente se calhar tinham de voltar atrás - é que admiro a capacidade de adaptação destas pessoas.

E depois, fico maravilhada com as carrinhas: são miniaturas de supermercado, com tudo meticulosamente arrumado, sem uma folga. Estou sempre atenta às buzinas e não perco uma oportunidade de apreciar a decoração de interiores destas pequenas mercearias ambulantes.

110301337_2697027467249872_2603136027753769_n.jpg

Há meses estive à conversa com o Diogo, um vendedor que ainda não tem 40 anos e viaja numa carrinha de mercearias há uns cinco. Reparei que no chão da carrinha, no lugar do morto, está uma balança eletrónica ligada a um computador, que lhe permite ir registando os pesos das batatas e da fruta e fazendo logo as contas. Não é bem uma startup, mas resolve o problema de forma eficaz (mais do que algumas startups).

Penso muitas vezes nas reportagens fantásticas que poderiam fazer-se com estas pessoas. Sobre elas e, através delas, sobre os lugares que vão ficando cada vez mais longínquos no mapa. Não porque a geografia mude, mas porque o que torna um lugar habitável para o dia-a-dia - que são também as pequenas lojas, serviços básicos, etc. - fica cada vez mais longe.

Pão afogado em unto de sardinha. Ou, se preferirem, bruschetta de Omega-3

Sardinhas a escorrer gordura, pão de trigo, salada de tomate e pimento assado. Não compliquem.

AG, 17.07.20

Ha_Sardinha_Assada_-_panoramio-HugoCuesta-cc-bysa-

Imagem: Hugo Cuesta, licença CC BY-SA 3.0

O meu método para comer sardinhas é este: ponho a salada no prato; ao lado, uma fatia de pão de trigo, daqueles de que podemos orgulhar-nos, resistentes a todos os ataques. Tiro uma sardinha da travessa - se possível, que esteja bem molhada em gordura - e ponho-a sobre a fatia de pão. Como. Repito o número de vezes necessárias.

No final, o pão vai estar bem impregnado do unto das sardinhas, por cima, e do molho da salada, por baixo. Está muito abaixo do patamar admissível para uma foto no Instagram. Tem, vá, um ar de coisa suja. Está no ponto.

Há comidas que não resistem à linguagem e à estética actuais - seja a fotográfica, seja a textual. Em inglês, a culinária usa e abusa de adjectivos que são inúteis para a felicidade que se consegue com esta fatia de pão. Quando acabo de ler a receita, já estou empanturrada de adjectivos e advérbios e já tudo me parece igual.

Daí o meu título. Eu podia chamar a isto uma bruschetta, e parecia logo muito melhor. Mas a fotografia (que não vou usar) ia denunciar-me. O Omega-3 é só para disfarçar (embora esteja de facto lá), para marcar presença nos clichés das comidas saudáveis.

Hoje, enquanto terminava as minhas sardinhas e ia medindo o degradé cada vez mais suspeito do pão, pensei nisto: um dos meus pratos preferidos, nesta fase em que os sabores se condensam na fatia de pão besuntada, como um borrão de matéria orgânica, não resiste a uma fotografia. É arte efémera.

Da salada tenho a dizer: que a das sardinhas não leva salface, nem pepino. Tomate e pimento assado, só assim, é toda uma receita. Podemos, claro, acrescentar o que entendermos - cada um manda na sua cozinha e assim é que deve ser.

Mas tal como o leite creme não leva iogurte - ou então é outra coisa, e pode perfeitamente ser outra coisa e ter outro nome, e viva a imaginação - a salada que acompanha as sardinhas assadas só precisa de levar tomate e pimento assado. Em certas zonas do Algarve, é temperada com alhos assados também na grelha e depois laminados. O que torna a bruschetta de Omega-3 ainda mais saudável, porque o alho tem não sei o quê.

Ainda os calhaus: quem adivinha o que está nesta imagem?

AG, 16.07.20

Continuando o tema do meu post anterior sobre pedras, rochas e geologia, aproveito para deixar aqui uma imagem dum passeio geológico que fiz há poucos dias na zona do Cabo de São Vicente.

Conseguem adivinhar o que são aquelas marcas circulares na pedra, que aparecem sobretudo do lado direito? A resposta vem a seguir à imagem, mas não façam logo batota...

20200715_121829.jpg

Estes fósseis - já digo de quê - estão bem visíveis numa grande pedra na praia da Mareta.

Antes, tínhamos visto na parede da falésia duma outra praia pequenas incrustações de carvão - vestígios fósseis de árvores com uns valentes milhões de anos (acho que eram 160... como dizia o outro, é fazer a conta, e o geólogo que explicou tudo tão bem que me perdoe o esquecimento). Quem olha para estes pontos negros na rocha clara vai achar que são caganitas de pássaro. O passeio incluíu ainda uma explicação entusiasmada duma coisa bonita que dá pelo terrível nome de 'discordância angular',  na zona do Telheiro.

Se estiverem interessados, vai haver mais um passeio destes em Agosto. Termina na praia, o que quer dizer que pode perfeitamente acabar num mergulho refrescante. Informações aqui.

E agora a resposta: aquelas marcas circulares são corais fossilizados.

Como comecei a gostar de calhaus (e dicas para as viagens que podemos fazer com eles)

AG, 13.07.20

Eu hei-de amar uma pedra, diz a canção. Não uma, mas muitas, acrescento eu. As pedras contam algumas das histórias mais antigas e extraordinárias do mundo. E se contam histórias, como não gostar delas? 

603832_10200933471728421_1076928643_n-gardunha.jpg

Serra da Gardunha

A propósito do reconhecimento da Estrela como geoparque, pela UNESCO, lembrei-me da forma como as pedras e formações rochosas passaram a fazer parte das minhas viagens.

Deixo hoje aqui ideias e ligações úteis para quem quer conhecer alguns dos belos calhaus que fazem a nossa paisagem.

Da geologia, poucos sabemos mais do que aquilo que aprendemos nas aulas de Ciências da Natureza: a deriva dos continentes, os vulcões, os tipos de rocha... Com sorte, o suficiente para percebermos porque é que na Praia Grande, por exemplo, as pegadas dos dinossauros estão numa parede impressionante de rocha que é agora vertical.

14524346_10210387264067321_237911357043220820_o-prPraia Grande, Sintra

Nesta história, ficamos perdidos porque a escala do tempo é inalcançável, escapa à nossa capacidade de processamento. Quando me dizem que uma rocha tem 5 milhões de anos, podiam dizer 50, que eu entendia o mesmo.

‘Como é ameaçadora, por contraste, a noção de uma imensidade quase inconcebível, em que a presença humana está restrita a um milimicrossegundo mesmo no final!” - Stephen Jay Gould

Stephen Jay Gould explica como a noção deste tempo que se estende para o passado e para o futuro, sem princípio ou fim à vista, surgiu e afectou profundamente a nossa visão do mundo - tal como a descoberta de que a Terra não era o centro do Universo, por exemplo. Em Time’s Arrow, Time’s Cycle, escreve: ‘Como é ameaçadora, por contraste, a noção de uma imensidade quase inconcebível, em que a presença humana está restrita a um milimicrossegundo mesmo no final!”

É assustador, sim, mas é fascinante e libertador. E ter na mão um fóssil, que já foi vivo e agora é pedra, e que nos chega desses tempos demasiado distantes, é como ver passar um cometa. Somos visitados por uma criatura de outro mundo.

20190308_095319-fosseis-pragal.jpg

Fósseis tirados das paredes derrubadas duma casa velha do Pragal

Para mim, o interesse pelos calhaus voltou, para ficar, com os passeios do Ciência Viva no Verão, há uns dez anos. Não apenas o interesse pelas pedras bonitas que encontramos na praia ou num passeio pelo campo, mas pelas grandes rochas, montanhas e bacias que dão forma ao mundo.

Nesses passeios conheci grutas, minas, formações rochosas à beira-mar, dobras torcidas e retorcidas. Ajudaram-me a perceber não só as pedras, mas toda a paisagem. O porquê de ali haver aquelas plantas, aquelas cidades e vilas, aquela estrada, aquelas cores. O porquê de o vinho numa encosta ter um sabor, e cem metros mais abaixo ter outro. 

Mas passemos a coisas mais práticas. Imaginemos que querem ver calhaus, de preferência que vos expliquem o que estão a ver - por onde começar?

 

Algumas sugestões de passeio:

1 - Ciência Viva no Verão

O programa, mesmo sem a pujança de antigamente, continua, e é uma excelente forma de começar. As actividades arrancam já no dia 15 de julho e, até 15 de setembro, há muita geologia para explorar - basta escolher o tema na lista de tags ao fundo desta página.

20181225_121615-pedrafurada.jpg

 

2 - Geoparques portugueses

Portugal já tem cinco geoparques reconhecidos pela UNESCO - locais cuja geologia é um testemunho importante da evolução da Terra. Em cada um dos sites pode-se saber o que há para ver e fazer. 

Aqui fica a lista:

 

3 - Roteiro das Minas e Pontos de Interesse Geológico de Portugal

O site do Roteiro de Minas tem mapas e roteiros para quem quiser fazer-se à estrada. Na página dos Amigos do Roteiro de Minas são anunciados regularmente passeios e outros eventos abertos ao público.

 

4 - Percursos pedestres com pedra à vista

Alguns percursos de pequena rota (aqueles que conseguimos fazer em um dia) levam-nos a sítios com uma geologia interessante. Os folhetos ou páginas de internet desses roteiros dão algumas explicações, se bem que quase sempre numa linguagem demasiado técnica (é por isso que, quando não percebo estes temas, prefiro um passeio guiado por alguém que fale uma linguagem clara e que dê sentido ao que vejo).

São muitos e só conheço alguns; deixo algumas sugestões de sítios que não fazem parte dos geoparques que referi acima. Se conhecem outros de que gostam, deixem as sugestões nos comentários.

20190224_155802-carrapateira2.jpgPraia da Carrapateira, Algarve

5 - Geossítios

O site Natural.pt lista um grande número dos chamados geossítios - pontos de interesse geológico. Não tem muita informação sobre cada um deles, pelo menos em formato para leigos, mas é um bom ponto para começar a explorar - às vezes, temos locais destes ao pé da porta e nem sabemos.

 

6 - Geo Walks&Talks - Geoturismo no Algarve

Vá, estou a promover as actividades duma empresa privada - mas porque é a única que conheço que se especializou em fazer percursos dedicados exclusivamente à geologia. Não só isso, mas o Francisco e o Hélder são de factos muito bons a contar as histórias dos sítios (e dos bichos - como o fóssil  da ‘super salamandra algarvia’). Se forem ao Algarve, aproveitem.

 

7 - Geomonumentos de Lisboa

E termino com Lisboa: há dois anos encontrei, para os lados de Marvila, uma escarpa curiosa ao pé da qual havia um painel sobre a rota dos geomonumentos da cidade. Podem saber quais os pontos de interesse dessa rota neste mapa.

22496025_10214136226149030_1140018299918815821_o-m

A Wikipédia tem uma lista de geomonumentos de Portugal que é mesmo só uma lista mas, de novo, pode ser um bom ponto de partida.

 

Leituras sugeridas

Não vou sugerir livros sobre geologia, mas alguns livros de geografia e de viagens que, de uma forma ou de outra, falam sobre a paisagem, a forma como a geologia a definiu, como os seres humanos se instalaram nela.

20200103_123809-ursa.jpgPraia da Ursa, Sintra

Acabei há dias o último da lista, de Duarte Belo, edição do Museu da Paisagem, que é sobre uma caminhada de mais de 500 km, feita em 15 dias, entre Freixo de Espada à Cinta e o Cabo da Roca, percorrendo os cumes da linha montanhosa que divide o Portugal atlântico, a norte, do mediterrânico, a sul. 

Outras sugestões de leitura? Deixem nos comentários.

A arte de dormir a sesta na grande cidade

AG, 09.07.20

A nossa cama, esse objecto de desejo, nem sempre está disponível quando nos dá jeito. E muito menos para aqueles de nós que moram nos subúrbios. Que fazer quando o sono ataca?

Patriarcal_Reservoir_01.jpgJardim do Princip Real, Lisboa. Foto: Nicola, licença CC BY-SA 3.0

 

Sentada no silêncio de um jardim público a desconfinar, há poucas semanas, lembrei-me de como, em 2012, mais ou menos naquele lugar - a memória dos sítios tem destes gatilhos - senti uma vontade urgente de dormir a sesta. Sei que foi em 2012 porque esta história acaba com um filme, e esse filme (fui agora confirmar) é de 2012.

Nesse dia de 2012 estava bem no centro da cidade e, embora num jardim, o barulho era constante: dos carros, dos telemóveis já na moda apocalíptica da alta-voz, da música da esplanada. O banco de madeira também não era confortável. Pude observar que a relva era muito frequentada por cãezinhos. 

Tentei ainda socorrer-me do Map for Crying Travellers, da Joana Estrela. Um lugar suficientemente discreto para chorar devia ser também bom para dormir (o sono ia pesando mais). Mas os sítios do livro de que me lembrava não serviam, pensando bem, excepto talvez o Jardim da Gulbenkian, que me ficava fora de mão.

Uma igreja? Uma igreja é um lugar sossegado, sim, mas provavelmente demasiado desconfortável. Podia sentar-me e fingir que estava apoiada no banco da frente a rezar muito compenetrada, mas o risco de cair para o chão era imenso - e podia também acordar outras pessoas.

Comecei a tomar consciência dessa evidência terrível: numa cidade, quase não há lugares onde se possa dormir uma sesta. As necessidades básicas podem ser satisfeitas por qualquer forasteiro - comer, beber, ir à casa-de-banho - mas dormir, que é igualmente essencial, não tem lugar. Se eu fosse empreendedora, podia ter começado aqui um negócio. Como tinha simplesmente sono - muito sono - comecei a desesperar.

Comecei a tomar consciência dessa evidência terrível: numa cidade, quase não há lugares onde se possa dormir uma sesta.

Foi então que me lembrei dos cinemas. Há anos que durmo nos cinemas - o que não tem nada a ver com o interesse dos filmes, apenas com o sono fulminante que me atinge quando me sento numa cadeira ao fim da tarde. 

O plano pareceu-me bom, mas precisava de escolher bem. Não podia ser um filme que eu quisesse mesmo ver, porque ia ficar com pena e esforçar-me por acompanhar. Não podia ter tiros nem ser um musical. Não queria nada violento, para o caso de acordar a meio e apanhar alguma cena que me perturbasse a paz de espírito.

Olhando para o cartaz, decidi: ia ver o Lincoln. Tudo apontava para que fosse um pastelão histórico sem gritarias; no máximo, podia acordar com o barulho do tiro que matou o presidente dos EUA, mas isso à partida seria mais perto do fim. 

A sesta ia sair-me cara, mas estava a ficar desesperada - os meus ataques de sono são incapacitantes. E fui.

Sentei-me no escuro, encostei a cabeça o mais confortavelmente que pude, fechei os olhos. Abri-os. Tal como suspeitava, o filme, mesmo com o Daniel Day-Lewis, era um pastelão. Mas, mesmo só para chatear, não consegui pregar olho. 

Alguém que partilhe este sofrimento? Desabafem nos comentários.