Não, Einstein não disse isso: 9 citações erradas que todos conhecemos (mais uma para o caminho)
Uma frase inspiradora por dia, nem sabe o bem que lhe fazia: excepto quando essa frase não é, afinal, daquela pessoa que todos admiramos.
Não há como escapar às citações de grandes personalidades que todos os dias aparecem nos feeds das redes sociais. Se estiverem numa imagem com a cara da pessoa que alegadamente disse aquela frase, como os santinhos das orações, mais ainda. E o impulso de partilhar, se nos identificarmos com o que é dito, é quase irresistível.
Acontece que raramente nos damos ao trabalho de verificar se aquela pessoa, de facto, disse aquela frase. Confiamos, mesmo sem sabermos de onde vem. E isto não é novo: há muitas citações famosas que já eram mal atribuídas muito antes das redes sociais e da internet.
De todas as personalidades a quem são atribuídas as mais variadas grandes frases, há duas vítimas clássicas que parecem ter dito tudo e um par de botas: Einstein e Mandela. É fácil darmos atenção a qualquer coisa que tenha sido dita por um génio ou por alguém de enorme estatura moral. E, como veremos adiante, nem sempre isso é inofensivo.
Para já, a lista: 9 citações mal atribuídas
1 - “A diferença entre a estupidez e o génio é que o génio tem limites” – Albert Einstein
Einstein inaugura a nossa lista. A frase já foi localizada em textos franceses do século XIX e, em inglês, também antes de Einstein.
2 - “A nossa maior glória não é nunca cairmos, mas erguermo-nos de cada vez que caímos” – Nelson Mandela
Mandela disse esta frase, como nós dizemos tantas vezes ‘tudo vale a pena se a alma não é pequena’, sem nos darmos ao trabalho de referir que estamos a citar Fernando Pessoa. Mas a frase não é dele: está escrita pelo menos desde o século XVIII (podem ver a longa história da expressão nesta página), sendo atribuída, num livro, a um viajante chinês.
3 -"Se fui capaz de ver mais longe, foi por estar sobre os ombros de gigantes" – Isaac Newton
Esta frase célebre, que muitos atribuem a Newton, não é uma expressão original do cientista. Newton usou-a numa carta, mas ela já tinha sido usada no século XII pelo teólogo John de Salisbury. E, quem sabe, por alguém antes dele. Mais aqui.
4 - “Se nao têm pão, comam brioche!” – Maria Antonieta
Fiquei muito desapontada quando soube que a rainha francesa, afinal, não disse esta frase nos dias agitados da Revolução Francesa. Rousseau fala, nas suas Confissões, duma rainha que se saiu com um ‘Comam brioche!”. Só que esse livro foi escrito anos antes da revolução francesa.
5 - “Podemos enganar toda a gente em alguns momentos e algumas pessoas em todos os momentos, mas não é possível enganar toda a gente em todos os momentos” – Abraham Lincoln
Lincoln também é, como seria de esperar, um íman de falsas citações. Esta espécie de adágio popular, no entanto, já existia por escrito, numa forma bastante semelhante, no século XVII, e foi incluído na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert de 1754. Pode até ser que Lincoln tenha dito a frase, mas não é uma criação sua.
6 - “O génio é 1% de inspiração e 99% de transpiração” – Thomas Edison
Pois é, já vimos esta frase atribuída se calhar a uma dúzia de pessoas diferentes. Quem não gostaria de ter-se lembrado de uma coisa tão inteligente – de preferência, sem grande esforço?
Um dos candidatos a autor desta frase é Thomas Edison. Aparentemente, a ideia já circulava antes dele, já tinha sido enunciada de várias formas, e Edison apenas acrescentou os números. Uma explicação mais elaborada, com todas as fontes, nesta página.
7- “Não concordo com o que diz, mas defenderei até à morte o seu direito a dizê-lo” – Voltaire
Não há nenhum registo escrito do filósofo francês com esta frase, que tão bem encaixa no espírito das suas ideias. A frase aparece numa biografia de Voltaire escrita por Evelyn Beatrice Hall e publicada em 1904. A autora não afirma, sequer, que a frase é de Voltaire - usa-a como síntese da sua forma de pensar.
8 - “A morte de uma pessoa é uma catástrofe. A morte de milhões é uma estatística” – Josef Estaline
Calhava bem que alguém com os pergaminhos dizimadores de Estaline fosse autor desta frase. Mas o líder soviético afinal não a disse. A frase é dum livro satírico do alemão Kurt Tucholsky, de 1923.
9 - “Elementar, meu caro Watson” – Sherlock Holmes/ Conan Doyle
Se, como eu, são fãs dos livros de Sherlock Holmes, esta é dura de aceitar. A frase não aparece em nenhum dos livros de Holmes, embora haja expressões próximas – como ‘meu caro Watson’. Mas desta forma exacta, aparece apenas no livro Psmith Journalist, de Wodehouse, um admirador de Conan Doyle. O livro está disponível no Gutenberg.
Mas qual é o mal? Se as frases são boas...
De algumas destas confusões pode não vir mal ao mundo. Até porque muitos dos que originalmente as disseram não estão cá para queixar-se. Mas há manipulações deliberadas: atribuem-se frases a personalidades que, pelo seu perfil, inspiram confiança às pessoas.
E aí somos todos humanos: se uma personalidade poderosa ou inteligente diz uma coisa com que eu concordo, sinto-me legitimado nas minhas opiniões. Sinto-me, por contágio, uma pessoa inteligente, e sinto que tenho razão (que é, como sabemos dos debates online, uma convicção por vezes perigosa).
Um exemplo: há meses circulou um meme com o retrato do ex-presidente da República, general Ramalho Eanes. O texto dizia o seguinte:
"A desobediência civil não é o nosso problema. O nosso problema é a obediência civil. O nosso problema é que pessoas por todo o mundo têm obedecido às ordens de líderes e milhões têm morrido por causa dessa obediência. O nosso problema é que as pessoas são obedientes por todo o mundo face à pobreza, fome, estupidez, guerra e crueldade. O nosso problema é que as pessoas são obedientes enquanto as cadeias se enchem de pequenos ladrões e os grandes ladrões governam o país. É esse o nosso problema".
O contexto era ideal: dum lado, um país a braços com escândalos de corrupção e com o sentimento de que os criminosos ficam impunes, além de outras insatisfações. Do outro, alguém como Eanes (que manteve sempre a reputação de figura honesta e já se afastou do poder há tempo suficiente para quase ninguém estar zangado com ele) apela à desobediência.
É como dar a bênção, não só à justeza do descontentamento, mas também à legitimidade de desobedecer (e não estou a defender ou a demarcar-me desta visão do problema - podia ser qualquer outra frase). Se até o Eanes o diz...
É claro, a citação é falsa, como o Polígrafo mostrou – e não há mesmo dúvidas, porque o livro de onde ela foi tirada está identificado.
Não parecia de todo o tipo de coisa que Eanes, um militar, dissesse em público – e muito menos deixasse escrito. Mas sabe-nos bem ter alguém que respeitamos a pôr em palavras (bonitas, ainda por cima) o que no fundo já pensávamos, e o espírito crítico desaparece antes de acabarmos de ler a primeira linha. Eanes provavelmente também não gostou de que usassem a sua imagem para isto.
Quem quer que criou este meme sabe bem como funciona a manipulação. E os casos visíveis deste fenómeno são cada vez mais, e correm cada vez mais depressa.
Seja qual for a frase, qualquer que seja o seu impacto, a higiene dos factos é sempre um excelente princípio
Haverá quem encolha os ombros, mesmo sabendo que as citações estão erradas, porque entendem que ‘dizem a verdade' e isso é que interessa.
O grande perigo não está naquelas, relativamente inócuas, mas em outras, como a de Eanes, talvez partilhadas com o mesmo encolher de ombros, e que ampliam cada vez mais manipulações políticas.
Seja qual for a frase, qualquer que seja o seu impacto, a higiene dos factos é sempre um excelente princípio, seja para citações, seja para outros materiais. E não havendo certezas, mais vale não partilhar.
E como é que sabemos se a citação é autêntica?
A má notícia é: dá trabalho. Sempre que encontramos uma frase que nos faz dizer ‘Ah, é isto mesmo! Vou enviar aos meus amigos’ ou 'Na mouche!' ou 'Ora aqui está uma grande verdade!' – é bom desconfiarmos. De nós mesmos, antes de mais.
Por vezes, uma pesquisa simples, sempre com a comparação de várias fontes, e que estas por sua vez indiquem onde fizeram a verificação, permite perceber se a citação é legítima.
Pesquisar online o texto da frase, seguido do nome do autor e de ‘fake quote’ ou ‘falso’, ou outra expressão que o motor de busca entenda, é um caminho.
Há também sites especializados neste tema, como os impressionantes Quote Investigator e The Phrase Finder.
O Polígrafo tem também feito algum trabalho de verificação a propósito de citações bombásticas, recentes, atribuídas a políticos – e aceitam discos pedidos; é questão de lhes propormos uma citação.