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GAZUA

GAZUA

Para onde vai este caminho?

AG, 28.11.22

Há muitos anos, já não sei onde, li uma entrevista ao fotógrafo Sebastião Salgado sobre um seu projecto na Etiópia. Dizia ele que alguns dos caminhos que percorreu lá, nas montanhas, existem há mais de 3 mil anos. Foi nesse momento que decidi (mais uma vez) que queria muito ir à Etiópia. Mas ainda não fui.

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Caminhos fazem-se e usam-se. Só existem enquanto se fazem e se usam. Basta andar por zonas despovoadas para perceber isso. Há semanas percorri caminhos na serra de Monchique que provavelmente foram os mesmos que o meu avô fez tantas vezes, há muitas décadas atrás, quando ia comprar cortiça. E tanta gente antes de nós: um desses caminhos é (dizem) uma calçada medieval. 

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Onde não passamos (ou outros animais) o mato cresce, a erva tapa as linhas de passagem, o caminho desaparece. Ali ao lado, às vezes, nasce um caminho novo. Hoje em dia é quase sempre uma estrada de alcatrão ou um estradão largo para passagem das máquinas, caso haja floresta. 

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Às vezes é ao contrário: desenha-se um parque ou um jardim, o arquitecto decide onde vão ser os caminhos. Passados poucos meses, as pessoas criaram outros, muitas vezes uma alternativa mais pragmática aos que foram decididos nos gabinetes. Em inglês chamam-lhes 'desire paths'. Em português não sei que nome têm. Nascem como as ervas daninhas, ignorando a ordem alheia. São sulcos castanhos, modestos, económicos.

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Quem gosta de caminhar tem normalmente um tipo de caminho preferido. Não só por ser a subir, ou a descer, ou plano, mas pela rudeza do piso, pela largura, pelo tipo de linha, pela distância a que nos deixa do que há em volta. Alguns são difíceis, pedregosos, escorregadios, obrigam-nos a concentrar-nos neles de tal forma que quase não nos lembramos de olhar em volta. Para mim, os melhores são os caminhos de pé posto – aqueles onde geralmente só podemos caminhar em fila indiana.

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Muitos passeios começam na berma de uma estrada municipal, tomam depois um estradão onde ocasionalmente passa um carro, depois vão estreitando, cada vez mais finos, cada vez menos marcados. E muitos acabam no meio de qualquer sítio, sem que se perceba por onde continuam. Dos caminhos rurais que permanecem, cada vez mais são alcatroados, cada vez menos são lugares onde se possa andar sem receio de passar um carro, ou com o prazer básico de pisar a terra, terreno macio e variado. Servem outros clientes, que não os ociosos caminhantes.

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Às vezes só são visíveis no verão, quando as ervas secam. Ou então a certas horas do dia, quando o sol bate de tal maneira que uma fileira de ervas ligeiramente mais gastas tem um brilho mais ténue, e percebemos que aquela linha quase indistinguível é um caminho. Quando acabam os caminhos, podemos sempre continuar e inventar um – e isso pode ser feito apenas andando, sem a pretensão de dar corpo aos muitos clichés que se colam a esta ideia de 'fazer o seu caminho'. Até porque, se não houver mais ninguém a fazê-lo, não vai deixar marca.

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Num dos locais onde ando regularmente a pé, seguindo por caminhos que já serviram hortas e pomares, hoje quase todos abandonados, os poucos carreiros ainda marcados vão dar, na maioria das vezes, a colmeias. Os apicultores parecem ser, ali, os últimos pastores de caminhos. Ainda que consiga passar para o outro lado das colmeias (nem sempre me atrevo), raramente encontro a continuação, porque para o apicultor o que interessa termina ali, e acabo por voltar atrás. Ou, se suspeitar de que dali a pouco irei dar a outro caminho, posso seguir em frente (e em frente pode ser qualquer direcção).

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São caminhos que atravessam terrenos particulares, mas onde já não passa ninguém, e nem todos gostam do piso acidentado – por vezes é preciso saltar valados, afastar silvas e espargueiras, furar por baixo da ramagem densa das árvores. Uma tesoura de poda dava jeito, mas ficou sempre esquecida em casa. Mas gosto desta negociação com as coisas que encontramos pelo caminho, sejam pedras, plantas, ribeiros, terreno revolvido por veados e javalis, outros animais.

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Este texto é como muitos caminhos: não vai a nenhum sítio em especial. Anda por aí às voltas. Se for para ir dar a algum lado, que seja a um livro – um livro extraordinário sobre caminhos, do Bruce Chatwin, chamado 'Songlines'. Não sei se há tradução para a expressão songlines, 'linhas de canções', que são no fundo os caminhos tradicionais dos aborígenes australianos. Mais do que caminhos marcados no terreno, são percursos registados em canções e histórias. Uma pessoa que conheça estas canções é capaz de fazer um determinado percurso através do território repetindo as palavras que o descrevem. Há poucas ideias que me pareçam tão maravilhosas como esta. 

 

Há muito que queria falar de caminhos, e várias vezes me esqueci. Esta semana peguei no livro "Das Pedras, Pão", com textos do Henrique Santos Pereira e fotografias do Duarte Belo, e logo de início há uma série de imagens de estradas e caminhos. O livro está à venda, por exemplo, na Livraria Snob.

 

 

 

Uma nespereira no quintal, um quintal na nespereira

AG, 19.06.22

O tempo das nêsperas já passou. Atrasei-me neste post, como às vezes me atraso a colher a fruta. Não importa: com ou sem fruta, elas continuam aí.

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As nespereiras são dos quintais e são das pessoas, como as pessoas são dos quintais e estes delas. É um triângulo amoroso. É uma árvore doméstica por excelência — o que não quer dizer que não exista em ruas e pracetas, hortas, pomares, ao lado de poços, em terrenos abandonados. A Eriobotrya japonica é originária do sudeste asiático. Em Portugal, cresce um pouco por todo o lado, do que tenho visto. Em algumas regiões, no Norte, chamam-lhes magnórios.

Convivo com elas há tantos anos e tão familiarmente que nunca pensei muito no efeito que têm. Este ano, nuns dias que passei no Algarve, enquanto cobiçava as nêsperas (demasiado altas, demasiado longe, demasiado flagrante), tirei uma série de fotografias a nespereiras, em locais e de tamanhos diferentes.

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A nespereira é uma árvore que dá boa sombra, dá bons frutos, tem bons ramos para o que for preciso. Mas cresce muito. Vive na nossa casa. É um daqueles bichos que primeiro se aninham algures num canto; que vemos crescer, embevecidos, regando sempre, mas logo tomam conta do espaço, ocupando o quintal, como um cão que não pára de crescer e que fica a transbordar da sua poltrona preferida (que às vezes também é a nossa).

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Tenho ideia de que é uma planta um pouco fora de moda. Alguém pensa, hoje, em plantar uma nespereira no jardim?

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É uma árvore densa, escura, com folhas duras e ásperas, recorte de melena comprida, desenhos firmes. Os cachos de flores são peludos. Floresce no Inverno, o que vale 20 pontos.

A nespereira não quer saber. Deram-lhe aquela terra, aquela luz. Cresce e dá frutos, sem fazer caso. Cresce à nossa volta. Um dia, quando nos damos conta, fazemos parte dela.

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Passeios em família: um mapa à descoberta da ciência na Serra de Sintra

AG, 20.08.21

Três coisas boas numa só: um mapa para explorar a serra, ciência e passeios ao ar livre. Este é um exercício académico, mas partilho aqui o mapa, dedicado a todos os que se entusiasmam a procurar fósseis de coral e pegadas de dinossauro, a ver calhaus que parecem prestes a vir por ali abaixo, nuvens, bosques e ventanias. E o mar ao fundo . 

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Este ano fiz um curso de design editorial no Cenjor, com os magníficos Ana FidalgoMarco Ferreira, José Alves e Ricardo Dias. O meu projecto final foi um suplemento de jornal sobre ciência para crianças. Para esse suplemento fiz um mapa da Serra de Sintra com pontos de interesse científico, que podem ver aqui acima. 

Confesso ter pouca paciência para o folclore da serra de Sintra como lugar místico. Acho mil vezes mais interessante perceber como surgiram aquelas rochas, ou procurar cágados e salamandras e fósseis de coral nas arribas do Guincho. Ou, até, levar com grandes rabanadas de vento. 

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Foi um trabalho demorado de pesquisa e, depois, de edição de textos e imagens e de criação de todos os elementos gráficos (neste caso, em Illustrator). Como dizem os jogadores da bola: soubemos sofrer (eu, pelo menos), mas com as sugestões, empurrões e dicas dos formadores e do resto do pessoal do curso a coisa fez-se.

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Ficam a faltar aqui os artigos do suplemento em que explicava melhor alguns dos temas. Não os ponho aqui por um motivo, que é também uma ressalva que deixo a quem porventura consultar este mapa. Embora tenha feito uma pesquisa cuidadosa, procurando informação em fontes credíveis (estudos científicos, site do ICNF, folhetos do programa Ciência Viva, entre outros), este mapa não foi revisto e validado por pessoas com formação científica. Espero que não tenha erros, mas não posso dar essa garantia. As coordenadas de cada local, pelo menos, estão certas, embora neste tamanho de imagem não sejam muito legíveis.

Agora, metam-se a caminho da serra, aproveitem o bom tempo e cansem-se a ver coisas boas. Boas férias!

Contos para ler nas férias: grátis, online e bons

AG, 10.07.21

Há tempos andei à procura do conto The Swimmer, do John Cheever, para uma amiga que não conhecia. Vai daí, lembrei-me de mais algumas coisas que deixo aqui como sugestões de leitura.

Captura de ecrã 2021-07-10, às 18.56.16.pngImagem: detalhe da ilustração de capa das "Collected Stories" de John Cheever, edição da Vintage

São todos contos que estão disponíveis online, gratuitamente (embora alguns sites peçam registo ou tenham um número limitado de artigos grátis). Infelizmente, há muito pouca coisa (ou nenhuma) de autores de língua portuguesa contemporâneos, mas os clássicos compensam.

Tudo junto, já dá leitura para umas valentes horas de praia, de cama de rede, de bóia de piscina ou de sofá. Boas férias!

Várias Histórias, de Machado de Assis

A Relíquia, Eça de Queirós (eu sei que não é um conto, mas faz de conto)

Na colónia penal, Franz Kafka (em inglês)

As filhas da Lua, Italo Calvino (em inglês)

The Mantle and Other Stories, Nikolai Gogol

In the cart, Chekov

The train, Alice Munro

The swimmer, John Cheever

A worn path, Eudora Welty

The Lottery, Shirley Jackson

The Moving Finger, Edith Warton

Foutains in the rain, Yukio Mishima

Her first ball, Katherine Mansfield

Blowup, Julio Cortázar

Beyond Lies the Wub, Philip K. Dick

A private experience, Chimamanda Ngozie Adiche

Dreaming Child, Karen Blixen

The cask of Amontillado, Edgar Allan Poe

The Secret Garden, G.K. Chesterton

A Telepohone Call, Dorothy Parker

Herodias, Gustave Flaubert

Recitatif, Toni Morrison

Sonny's Blues, James Baldwin

The Shadow, Hans Christian Andersen

Saint Cecilia, or, the power of music, Heinrich von Kleist

My first lie, and how i got out of it, Mark Twain

The ones who walk away from Omelas, Ursula Le Guin

 

Nota final: alguns estão em páginas html, outros em pdfs de melhor ou pior qualidade. São grátis, não é?

 

Agora há aqui um mar. Agora, não

AG, 14.04.21

Do alto da serra de Aire (mais propriamente, de Santo António) avista-se um mar que dura apenas umas semanas ou meses. É o polge de Minde, ou mar de Minde. Um mar a sério: quando a água sobe muito, há quem faça ali mergulho e ande de canoa. É um dos vários e impressionantes lugares que a água desenhou nesta serra. 

Polje de Minde inundado - imagem de Towiki60, licença CC BY-SA 3.0Polje de Minde inundado - imagem de Towiki60, licença CC BY-SA 3.0

Uma obra de água

O polge (ou polje, como preferirem) tem 2,5 km por quase 1 km e assenta numa bacia rectangular que, no Inverno, fica alagada. As águas das chuvas juntam-se às do lençol subterrâneo que atravessa aquela zona (onde nasce, entre outros, o rio Alviela) e às que escorrem das encostas da serra, conhecida pelo seu interior rendilhado de grutas e galerias. Este é um fenómeno descrito pelo termo científico cársico –  quando as rochas, calcárias, são moldadas pela acção da água, que provoca erosão e as dissolve quimicamente.

serradaire-santoantonio-vista.jpgVista do alto da serra (Santo António), com o polge lá em baixo, mais para a direita.

Esta página do site Natura Minde (não aconselhável a telemóveis) explica com algum detalhe o fenómeno do polje e o que lá encontramos. Em anos de grandes chuvas, a cheia pode atingir alguns metros de altura, como se pode ler nesta página da Junta de Freguesia de Minde

 

Não há pilriteiros em flor como os primeiros

Na Primavera, com sorte, o polge de Minde transforma-se num sítio de beleza extraordinária. Foi assim que o vi pela primeira vez, há talvez uns 15 anos e por simples acaso. Era o fim de semana da Páscoa e decidimos ir dar um passeio à serra. Quando chegámos a Minde reparámos – era impossível não reparar – num cenário deslumbrante: o polge era um espelho de água onde se reflectiam centenas e centenas de árvores carregadas duma flor branca e miudinha.

Há vários caminhos de terra que o ladeiam e atravessam. Escolhemos um e avançámos.

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No meio do arvoredo, cada vez mais estávamos num lugar à parte. Além das copas e do reflexo das flores na água, as pétalas brancas polvilhavam o chão e o ar em volta. Era o sítio certo para filmar um qualquer mundo perfeito e desaparecido: um cenário irreal de jardim duma só árvore, duma só flor a cobrir tudo, a desprender-se e a flutuar à nossa frente. Aquilo era verdade? Parecia que sim, mas isso só aumentava o nosso espanto.

Em vários momentos, para evitar zonas alagadas onde não conseguíamos passar, saímos do caminho e furámos entre as árvores, descobrindo assim que os ramos estavam cheios de longos, afiados espinhos.

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Só mais tarde descobri o nome do sítio, e fiquei a saber o que era um polge, e que aquelas árvores são pilriteiros. Além destes, encontramos também algumas oliveiras e carvalhos, e restos de antigos pomares: quando a lagoa está cheia, as árvores ficam meio submersas, vendo-se apenas o topo das copas a flutuar na água.  

A impressão daquele dia foi tão forte que várias vezes voltei, tentanto rever a mesma paisagem. E foi assim que descobri que não é fácil. Naquele dia tivemos uma sorte invulgar. Encontrámos os pilriteiros no momento certo, pleno, da floração, e o polge tinha a quantidade de água exacta para criar aquele espelho delicado. 

Cheguei a trocar mensagens com a equipa do parque natural que, com grande simpatia, ao longo de dois ou três anos, por esta altura me respondia dizendo que não, os pilriteiros ainda não estavam em flor. Ou, naquele ano, quase não tinham florido. Ou já tinha passado. Voltei lá algumas vezes, mas o polge era sempre apenas um lugar verdejante, sem dúvida bonito, por vezes demasiado ensopado para grandes caminhadas, uma ou outra vez com um pouco de flor.

pilriteiros-polgedeminde2.jpgSeparados à nascença: um pilriteiro cheio de flor, o outro sem nenhuma.

Este ano fiei-me nas chuvas intensas do Inverno e na floração dos pilriteiros que tenho aqui perto de casa. Fui à serra e desci ao polge. E foi o mais perto que estive daquela primeira vez. Não havia espelho d'água, apesar do Inverno chuvoso. Os pilriteiros ainda não estavam com a floração plena, mas muitos já tinham uma cabeleira branca leve e miudinha. Outros, nem uma flor – e por vezes, nem sequer botões por abrir. Vá-se lá perceber. Por todo o lado, marcas da passagem de animais e um leve cheiro a lodo. Lá no alto, trovejava. Não encontrei a imagem deslumbrante daquela primeira visita, mas quase. O polge estava magnífico. Se puderem, aproveitem os próximos dias de Abril para conhecê-lo.

Não só de maçã vive o strudel

AG, 23.03.21

Frau Sterz era tão baixa e curvada que, ao estender a massa na bancada, os cotovelos quase pousavam. “O strudel tem de ser fino como uma folha de papel” – explicava, num alemão com um sotaque adocicado, suspendendo a massa com o rolo à frente da cara. O véu de strudel deixava ver a pele morena e enrugada, o nariz grande, a dentadura a luzir num sorriso. Depois, lançava a massa no balcão, ajeitava-lhe as bainhas, estendia mais, falava sozinha. As duas filhas tinham posto a mesa e terminavam o creme de baunilha. Aquele era o dia do banquete anual, com o strudel que a mãe tinha trazido da Hungria, antes da guerra.

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Um strudel de maçã checo. Imagem: che, licença CC BY-SA 2.5

Se um dia vos convidarem para almoçar strudel, ponham de lado os mas. Por exemplo: “Mas vamos almoçar uma sobremesa?” Aliás, almoçar uma sobremesa não tem de ser um problema – para mim, é a concretização dum sonho de criança. Mais ainda se tiver maçã. Não as vulgares maçãs de mesa, macias e ronronantes. As maçãs do strudel devem cravar a garra naquele cantinho do céu da boca atrás dos dentes do siso. Na Alemanha cultivam-se variedades ácidas e aromáticas. Comidas cruas, desinfectam o paladar. Com uma purga de açúcar e manteiga ficam dóceis sem perderem o toque bravio.

Voltamos ao banquete de Frau Sterz. Não almoçámos uma sobremesa. O strudel de maçã, como descobri então, é apenas uma das variantes possíveis. À minha frente pousaram três grandes tabuleiros com cinco rolos de strudel, todos selados na massa que eu vira fazer. Inge, a filha mais velha, pegou na faca e cortou o suspense com um desabar de estalidos crepitantes. Pôs uma fatia no meu prato. Lá dentro, havia couve.

A couve: essa planta rústica que tantas vezes serve só para dar um ar de verdura aos protagonistas duma refeição. E bastou uma garfada para confirmar o que o nariz já anunciara: a crosta tostada e untuosa da massa de Frau Sterz assentava-lhe lindamente. Em juliana fina, com temperos discretos, suculenta, abria a refeição a solo, com uma grande cartada.

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Imagem: Matthias Böckel no Pixabay

A desordem entrou no banquete à medida que estreámos os outros rolos de strudel. Cada um começou a servir-se sem pedir licença. A couve era o único recheio salgado, e por isso viera a dobrar. Os outros eram doces, como no meu sonho de infância. Havia strudel de ginja, havia de quark, e havia de maçã. Estes eram acompanhados pelo creme de baunilha – um jarrinho de louça branca que as filhas de Frau Sterz iam enchendo, sem fim à vista. Sei que ficámos muito tempo à mesa e que eu nunca parei de comer. O strudel era pouco doce e a leve acidez dos recheios era amaciada pela baunilha. Não havia como enjoar. Frau Sterz e as filhas conversavam amenamente sobre a família, as casas, as compras, o cágado que hibernava, memórias antigas.

Frau Sterz e o marido tinham vindo da Hungria no fim dos anos 30. Eram de uma dessas zonas de língua alemã que o império austro-húngaro empurrou dum lado para o outro, consoante o mapa das nações. O início da guerra encaminhou-os para a Alemanha, e com eles veio aquele banquete de strudel.

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Maçãs Boskop, uma variedade com acidez. Imagem: Wolfgang Claussen no Pixabay

O strudel é comum a várias tradições culinárias da Europa central, mas, como é habitual nestas coisas, há sempre um país que se chega à frente para reivindicá-lo como seu e uma versão – neste caso, o strudel de maçã – que recebe todas as honras. Mas na sala de Frau Sterz não havia filhos predilectos. Amei-os a todos por igual.

 

Este texto foi escrito como exercício durante o workshop de Escrita Gastronómica do Ricardo Dias Felner, O Homem que Comia Tudo.

Uma laranja ao sol

AG, 18.03.21

Sempre que se sentirem zangados com a China por causa do covid, lembrem-se de que foi também de lá  que vieram as laranjas. Houve uma longa fase da história humana em que a maior parte do mundo não sabia o que era uma laranja. Felizmente, não vivi nessa altura.

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Como as coisas mudam: em 2019, segundo dados publicados pelo site Statista, as laranjas foram a quarta fruta mais produzida no mundo, em toneladas (atrás de bananas, melancias e maçãs; sendo o peso o critério, as melancias têm uma vantagem competitiva difícil de ultrapassar). 

Números à parte, há uma coisa a que vale sempre a pena voltar: por mais que a laranja se tenha tornado uma visão banal, continua a ser uma bomba de aroma e frescura a iluminar um recanto obscuro do nosso universo de sabores. Vale a pena comer cada laranja como se fosse a surpresa que, de facto, é.

 

A conquista do mundo em laranjas

As laranjas doces, um dos muitos citrinos existentes, são um híbrido do sul da China e de outras regiões do sudeste asiático. Foram trazidas por mercadores italianos e portugueses, pelo que só a partir do século XVI ficaram conhecidas na Europa.

Durante muito tempo, eram um produto de luxo, muito apreciado também pelo seu perfume. Eram comidas nos teatros londrinos nos tempos de Shakespeare, por exemplo, e provavelmente ajudavam a disfarçar os maus odores da multidão. Em algumas línguas o nome deste fruto lembra a viagem que fizeram até lá chegar: em albanês, por exemplo, chamam-se portukalli.

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A história do cultivo e da massificação das laranjas no Ocidente tem muitas curiosidades. Um episódio do Gastropod sobre as cores dos alimentos explica como as laranjas da Florida, que eram naturalmente esverdeadas quando maduras, perderam popularidade face às da Califórnia porque os consumidores eram mais atraídos pelo tom quente da laranja cor de laranja. O que levou os produtores da Florida, ao fim de algumas peripécias, a encaminhar grande parte da sua produção para o fabrico de sumo. Longe da casca, longe do coração.

E que nome se dava ao cor de laranja antes de as laranjas chegarem cá? Não é mais uma história do ovo e da galinha – este artigo da Atlas Obscura explica como o nome da cor veio depois do fruto, e também o que se fazia antes com todas as coisas do mundo que eram, e são, cor de laranja.

 

Um Inverno refrescante

As laranjas, tão refrescantes, são um fruto de Inverno, e não de Verão, que é uma coisa que sempre me apoquentou. Quem é que se enganou nas contas? Hoje em dia encontramos laranjas durante todo o ano, é verdade, mas isso apenas disfarça (muitas vezes, com falta de sabor) este capricho. Chega a ser doloroso comer uma laranja no Inverno, sobretudo se o dia mal começou e acabámos de tirá-la da árvore.

Sempre que as apanho lembro-me, por isso mesmo, das laranjas que ficavam pousadas no muro do tanque, a apanhar sol, em casa da minha avó. Estavam ali para aquecer, para não provocarem dores de dentes nem acrescentarem mais frio ao frio já ácido do tempo invernoso. Depois de um par de horas, ou duma tarde inteira, sentávamo-nos também nós ao sol no muro do tanque e descascávamos a laranja. O cheiro ficava entranhado nos dedos até ao jantar.

Robert_Spear_Dunning_-_Still_life_with_orange_and_Natureza morta com laranja e ameixa. Robert Spear Dunning (1881)

 

Quem nunca teve preguiça de descascar uma laranja que atire a primeira pedra. Eu sei que, durante anos, tive muita. Acredito que é a isso que as tangerinas, as tângeras e as clementinas devem em parte a sua popularidade: são mais simples, dão menos trabalho, sujam menos as mãos.

Havia quem usasse a técnica de chupar a laranja: amassava-se um pouco o fruto, depois fazia-se um buraquinho com os dentes ou com uma faca (ah, quantos de nós não se arrrepiam à ideia de morder a casca duma laranja!) e, por fim, sugava-se. Sobrava sempre sumo e polpa lá dentro, faziam-se barulhos esquisitos, mas satisfazia-se a gula sem ter o trabalho de descascar.

Foi só em adulta que deixei de sentir essa preguiça. O mesmo me aconteceu com outra fruta, ainda mais exigente: a romã. Em ambos os casos, passou a ser um ritual. Pouso a laranja num prato à minha frente. Se puder, evito facas. Com os dentes ou com os dedos arranco o topo e depois vou tirando pedaços da casca, sujando as mãos quando é preciso. Como a laranja sentindo que é o prato mais precioso e requintado dum banquete. A cada gomo penso naquele sabor e naquele aroma, luxuosos e raros.

Estamos agora na época do ano em que se comem as melhores laranjas. Estão tão doces quanto podem estar, muito sumarentas, e às vezes as peles interiores já são finas, quase se desfazem quando as tocamos. Certos dias, só porque sim, a meio da manhã ponho a laranja que vou comer mais tarde numa mesa ao pé da janela, a apanhar sol. 

 

Partir o mundo em dois para vê-lo melhor: há um novo mapa da Terra

AG, 09.03.21

Chegou mais uma proposta para resolver um dos quebra-cabeças favoritos da humanidade: como representar a esfera terrestre em duas dimensões? O planeta pode continuar mais ou menos igual, nas formas dos mares e continentes, mas os mapas não param de mudar. 

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A novidade: a projecção de J. Richard Gott

Navegar é preciso. Ser rigoroso, nem tanto

Mas para que precisamos nós de um novo mapa do mundo?

Uma experiência rápida: se olharmos para um planisfério comum, daqueles dos livros escolares, qual é maior: a Gronelândia ou África? O mapa abaixo é feito de acordo com a projecção de Mercator, que ainda é o tipo de mapa mais vulgarmente usado, mesmo em alguns serviços na internet.

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Projecção de Mercator

Aqui, a Gronelândia (a grande mancha branca lá em cima) é maior do que todo o continente africano, certo? Mas esta representação não corresponde à realidade: na verdade, África é quase 14 vezes maior do que a Gronelândia.

O que sucede com este mapa de Mercator é uma das várias distorsões a que os mapas – que são planos – são sujeitos quando tentam representar a esfera terrestre (daí o nome planisfério). No fundo, é um exercício semelhante ao que faríamos se tirássemos a casca a uma laranja e tentássemos depois arranjá-la numa mesa, juntando todos os pedaços até formarmos um rectângulo sem deixar buracos pelo meio. Não há maneira de resolver este problema com rigor. Se puxamos o cobertor (ou a casca de laranja) dum lado, destapamos o outro. Se não for uma distorção da área, é da forma, ou da distância.

Gerardus Mercator era um geógrafo e cartógrafo flamengo. Em 1569 apresentou este mapa, que se tornou popular porque resolvia o problema cartográfico que na altura era mais importante: ajudar os navegadores a irem dum ponto ao outro do planeta sem erros usando a bússola. Embora inflacione as áreas dos territórios mais a Norte e mais a Sul, consegue preservar os ângulos marcados nas cartas de navegação e as direcções. Quanto mais distante do Equador, maior é a distorção. O Alaska e a Gronelândia ficam, assim, muito maiores do que são na realidade.

A projecção de Mercator manteve-se ao longo dos séculos por ser eficaz e resolver alguns problemas práticos. O próprio Google Maps só deixou de usá-la em 2018, pelo menos quando fazemos zoom out e vemos o planeta inteiro. (Fui confirmar agora se tinha havido mais alguma alteração e, estranhamente, só activando a opção 'globo' é que isso acontece. Não encontro informação actual sobre esta questão.)

Entretanto, o GPS tornou-se a principal ferramenta de navegação e, pelo menos para esse efeito, Mercator caiu em desuso.

 

Muitas maneiras bonitas de errar

Ao longo dos tempos não faltaram novas propostas de planisfério, que pretendiam corrigir os problemas do mapa de Mercator. Algumas ficaram famosas, como a de Galls-Peters (ou de Peters).  Corrige as áreas inflaccionadas por Mercator, mas distorce a forma.

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Projecção de Peters

 

Há o Dymaxion de Buckminster-Fuller: uma proposta poliédrica com ar de pássaro de origami. Podem ver aqui uma animação que mostra como funciona.

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O Dymaxion de Buckminster-Fuller

 

Ou a projecção de Winkel-III, usada pela National Geographic desde 1998. 

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Projecção de Winkel-III (ou Winkel Tripel)

 

A explicação científica e a matemática de cada uma delas são fáceis de encontrar fazendo uma pesquisa, para quem esteja interessado. Mas as motivações para os novos mapas nem sempre eram apenas científicas. O mapa de Peters, datado de 1987, queria corrigir uma visão eurocentrista do mundo: na projecção de Mercator, a Europa era beneficiada relativamente a África e à América do Sul, criando a ilusão duma dimensão geográfica (e por consequência, política e tudo o mais) que não tem.

O que surpreende em algumas destas propostas é a criatividade e a qualidade estética. Como no caso do já referido Dymaxion, ou deste Autagraph, do japonês Hajime Narukawa, que venceu um concurso de design:

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O Autagraph de Hajime Narukawa

Dois lados do mesmo planeta: o planisfério do Dr. Gott

E há quem inove com ideias tão simples que nos perguntamos como é que ninguém se lembrou disso antes. Este mapa de três cientistas –Richard Gott, Robert Vanderbei e David Goldberg –, noticiado há poucas semanas, divide o mundo ao meio, ao longo do Equador. Imprime-se o hemisfério norte num lado, e o hemisfério sul no outro. Como se fosse um disco de vinil. Ficamos, portanto, com duas meias esferas achatadas.

É verdade que não dá para ver o mundo todo ao mesmo tempo, e que virar o disco causa uma transição brusca. Mas é uma daquelas ideias tão refrescantes que nos dá a sensação de que desfizemos mais um nó que bloqueava o nosso cérebro. Além disso, segundo o seu criador, este mapa tem menos erros, dentro do que é possível, do que qualquer uma das projecções anteriores. Este vídeo mostra como funciona:

Duas sugestões:

Um artigo da National Geographic que fala de algumas ideias erradas que quase todos temos sobre a geografia do mundo.

Este vídeo da Vox explica porque é que todos os planisférios estão, de alguma forma, errados, e como funcionam as projecções.



Quem andou a pôr mais cores no meu arco-íris?

AG, 11.01.21

Todos aprendemos na infância que o arco-íris tem 7 cores - sete. A famosa sequência: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Mas, afinal, parece que não é bem assim.

rainbow-mongolia-2048x1365.jpgImagem: Libreshot

Em criança sempre me fez espécie que o arco-íris tivesse anil e violeta. Para já, que raio era o anil? Em que é que se distinguia do azul, e do violeta, para se considerar que era uma cor à parte? Ainda por cima, com presença num clube tão exclusivo e limitado como o do arco-íris.

A história das cores é fascinante. Não tanto das cores, em si, mas da forma como os seres humanos percebem a cor e pensam sobre ela. Os olhos humanos têm três tipos de fotorreceptores (células especializadas sensíveis à luz), capazes de captar, dentro do espectro da luz visível, as cores primárias: vermelho, azul e amarelo. Tudo o resto são misturas, a que se junta a interpretação que o cérebro faz dos sinais enviados por estes sensores. 

Há textos gregos que falam dessa coisa, para nós estranhíssima, que é ‘o mar cor de vinho’. Aristóteles considerava que as cores eram cinco - amarelo, vermelho, violeta, verde e azul -, todas elas resultantes da mistura do branco com o negro. E, na Idade Média, os arco-íris eram descritos como tendo cinco cores.

 

De onde veio, então, a ideia das sete cores do arco-íris?

A culpa, como em muitas outras (e extraordinárias) coisas, é de Isaac Newton. Nas suas experiências com um prisma, Newton descobriu que a luz branca era composta de várias cores. Por motivos mais metafísicos do que científicos, Newton achou que deveriam ser 7 cores - tal como a escala musical tem 7 notas - e não apenas cinco. Assim, acrescentou o laranja e o anil (‘indigo’). 

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Ilustração de Spigget, licença CC BY-SA 3.0

Portanto, na verdade, o arco-íris tem… muitas cores. Todas as que o olho e o cérebro humano são capazes de ver. E eu continuo sem perceber bem o que é o anil.

Para quem queira saber mais sobre a história das cores, duas sugestões de leitura:

Fuji-san: a montanha que caiu do céu (e nem sempre toca no chão)

AG, 23.12.20

O Monte Fuji é, na cultura tradicional japonesa, uma montanha sagrada. Eu não acredito em montanhas sagradas, mas acredito no monte Fuji. Porque apareceu-me como uma visão. E sempre que penso nele, ainda o é.

fuji-estacao.jpgTal como gosto de calhaus, gosto de montanhas. Ou até de pequenas colinas, se for o que tenho à mão. Quando estive em Tóquio, decidi aproveitar um dia para ir ver o Monte Fuji. Ir ver o Fuji pode ser apenas isso: vê-lo. Não implica subi-lo, que é o que eu gostaria de fazer. Mas uma pesquisa rápida fez-me perceber que a ascensão do Fuji é coisa que requer alguma preparação e tempo - sempre são quase 3800 metros de altitude. Não se vai assim dum dia para o outro.

E mesmo decidir ir só vê-lo pode ser complicado. São muitos os dias em que a neblina tapa a montanha completamente. Por isso, há vários sites com webcams que permitem saber como está o tempo no Fuji, e previsões meteorológicas especializadas para potenciais visitantes. Por sorte, havia um dia em que as condições pareciam ser boas, e arrisquei a viagem.

A região em redor do Fuji tem vários lagos. A viagem até lá faz-se de comboio - no meu caso, partindo do caos meticulosamente organizado que é a estação de Shinjuku. Apanhei um comboio regional, lento o suficiente para poder apreciar, pelo caminho, as ruas e os quintais que se avistavam pela janela. Os cais por onde passávamos estavam cheios de trainspotters: gente de todas as idades armada de câmaras fotográficas de todos os tamanhos e graus de sofisticação, a disparar quando o comboio se aproximava. Quase todos os passageiros eram japoneses: ninguém comia nem bebia nas carruagens, nem havia sons de telemóveis, numa etiqueta que ali é comum a todos os transportes públicos e que reduz muito o stress duma rede densa que transporta milhões e milhões de pessoas.

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Depois da larga planície que se estende à saída de Tóquio, o comboio começou a abrandar e a circular por entre colinas, e depois ao longo de vales cada vez mais encaixados, parando em pequenas vilas durante minutos em que nada acontecia. Pelas minhas contas, faltava uma meia hora para chegar ao meu destino, perto do lago Kawaguchi, onde nesse dia decorria um festival dedicado à shibazakura - uma flor de primavera, cor-de-rosa, que cobre os terrenos.

Na verdade, eu estava um pouco triste por não poder subir o Fuji. Ver uma montanha ao longe não é, de todo, a minha ideia de ver uma montanha. Mas a perspectiva do festival - com comida, bebida e sabe Deus o que mais me esperava - era simpática.

Enquanto espreitava pela janela do comboio, tentando adivinhar de que lado me surgiria a montanha, ouvi de repente uma mulher gritar 'Fuji-san!', com alegria. Olhei na sua direcção: várias pessoas se tinham levantado. Ao longe, por cima do perfil escuro das colinas, flutuava no céu azul um pequeno cone estriado, branco e luminoso.

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Quando digo que flutuava, é literal. Era uma ilusão de óptica, claro. Mas havia uma neblina ligeira em volta do monte que esbatia toda a linha da encosta e permitia confundir a montanha com o ar em volta. O Fuji era praticamente invisível excepto no topo, onde havia linhas de neve iluminada pelo sol da manhã e perfeitamente destacada do céu em volta.

Fiquei sem fala. O Fuji era uma visão, era fisicamente impossível. E de repente, desapareceu, numa curva do caminho.

E reapareceu passado um minuto, do outro lado, e de novo as expressões de espanto e admiração dos passageiros me deixaram adivinhar onde ele estava. Durante minutos, foi este o jogo naquele comboio: descobrir onde estava o Fuji. Gritar, apontar, sorrir.

O resto do dia, na verdade, foi bastante semelhante. O festival não era especialmente interessante, e depois de almoçar saí do recinto e atravessei a vila até às margens do lago. Aluguei uma bicicleta e pus-me a caminho durante um par de horas, contornando o lago pela estrada de asfalto e por caminhos de terra, indo até ao fundo dos pontões que aqui e ali permitiam entrar um pouco mais dentro do espelho de água.

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De todos os lados, o objectivo era sempre o mesmo: encontrar o Fuji, aquele cone elegante e quase irreal, aquele umbigo da Terra. De repente, percebi o que tinha levado Hokusai a pintar as suas '36 vistas do monte Fuji' (e depois 100), uma empreitada que sempre me tinha parecido curiosa. Não há como não ficar a olhar para o Fuji.

fuji-hokusai.jpgUma das 36 vistas do Monte Fuji, de Hokusai

Era uma nave espacial suspensa sobre a Terra, pensei. Uma lapa. Um bolo coberto de açúcar em pó. Um vulcão de sal, ou de poeira de gelo. De cada vez que olhava, parecia-me qualquer coisa diferente. Sempre um esplendor. Tão completamente distinto de tudo o que havia em redor - dos outros relevos, das florestas, das cidades, dos automóveis e das casas - que só podia ter vindo de outro mundo. Tentava aproximar-me o mais possível para perceber, pelo menos, a textura das encostas: que pedras, que árvores as cobriam? Mas sabia que estava demasiado longe para perceber o que quer que fosse. O Fuji ia continuar a ser apenas aquilo: uma visão.

A luz mudou e o efeito mágico da manhã foi-se desvanecendo. A linha da encosta começou a ficar mais marcada, o cone branco perdeu o brilho inicial. 

O regresso foi feito num comboio muito mais lento e apinhado, com transbordos em sítios cujo nome esqueci. Até ao último momento, torci a cabeça para trás para guardar ainda mais uma imagem da montanha.